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30/07/2018
Óia o picolé
Santos já nascem feitos, ou qual o mistério que está por trás de algumas almas?


Óia o  Picolé
20170926
 
- Oia o picolé! Óia a geladinha! Picolé!...
- Mãe, hoje também não dá pra comprar picolé, né? Não tem dinheiro...
- É, filho, ainda não podemos.
- Não faz mal, mãe, eu vou fazer uma limonada bem gostosa... Mãe, o Marinho pode chupar bastante picolé e geladinha, né? Ele tem um carrinho cheio...
- Não! Ele não pode: os picolés não são dele. Ele só vende.
- Ele não pode tirar nenhum?
- Ele precisa vender bastante: cada dez que ele vende, pode chupar um.
- Ele vende bastante...
- É! Mas ele não tira os picolés: Ele troca por dinheiro para ajudar a mãe dele que é muito pobrezinha.
- É! A casa da Dona Ceda é muito pequena: o telhado é de folhas de palmito e é toda cheia de estacas. Mãe, como é que eles podem morar ali?
- Eles não têm outro lugar e então se conformam...
- Mãe, mas será que DEVEM se conformar?
- Acho difícil! E é por isso que os filhos da Dona Ceda trabalham: alguns na olaria, outros na venda do Seu Irineu, o Marinho vende picolés...
- Coitado do Marinho: ele está rodeado de picolé e não pode chupar nenhum e nem pode levar para a mãe e os irmãos!
- È isso mesmo! Mas é muito bonito quando as pessoas trabalham e se preocupam com outros.
- Vou tomar limonada, mãe e não se preocupe: Eu não gosto mesmo de picolé!
E isto não era verdade: ele sabia disso e a mãe também! Mas Beto sabia das dificuldades de seus pais, e por isso não exigia nada e se contentava com o que podia ter, como a limonada dos frutos que ele mesmo colhia no quintal da casa.
Beto frequentava a escola da cidade, e as aulas começavam às 8,00 horas e iam até ao meio dia: a escola ficava a três quilômetros de distancia e Beto fazia a pé esta caminhada, todos os dias, pois também não havia dinheiro para o “circular” ou para o “carro de mola”, mas ele gostava da escola e jamais faltava às aulas.
Em um determinado dia, ele estava demorando a chegar a casa e sua mãe começava a se impacientar...
- Óia o picolé! Picolé...
A mãe se sobressaltou: Parece a voz do Beto...
- Picolé! Óia o picolé...
- Beto! É você?
- Oi, Mãe! Agora sou vendedor de picolé, sorvete, geladinha...
- E já vendeste alguns?
- Nenhum, mãe! O “Seu Zéo!” botou só dois picolés no carrinho e eu não quis vender lá na cidade, para mostrar para a senhora os picolés que eu vendo! Agora sou vendedor de picolé!
A mãe abraçou o filho com a força do coração que só as mães possuem!
Dois vizinhos compraram os dois picolés e Beto voltou a cidade, para devolver o carrinho.
No dia seguinte fez o trajeto da cidade até sua casa vendendo picolés e quando chegou em casa, restavam três.
- Mãe, um é da senhora e os outros dois eu vou levar para a Dona Ceda, porque o Marinho ficou doente...
- Mas você vendeu quantos?
- Cinquenta” Mas os outros dois eu dei para os filhos de “Seu Zeca” por que eles não podem comprar.
Nestes momentos as mães choram, sentem vontade de abraçar mais forte os filhos... Tem vontade de ver e sentir de perto estes coraçõezinhos tão bonitos!
- Mas você não chupou nenhum? Você gosta tanto!
- Fica para outra vez, Mãe... Ah! Mãe, amanhã não tem aula! Posso vender picolé o dia todo?
- Mas Beto, vender picolé não dá “futuro”! Já pensaste nisso?
- Mãe, o meu futuro ainda tá longe! Enquanto isso vou vender picolés para ajudar a senhora e alguns que são tão pobres!
- Podias trabalhar no armazém do “Seu” Afranio: eles precisam de meninos para ajudar a ensacar feijão, limpar as cebolas...
- Mãe, eu já fui lá e não gostei!
- É muito pesado?
- Eu não gostei do que eu vi.
- E o que viste?
- Mãe, eles descarregam os sacos de sessenta quilos de feijão, de arroz, de milho  e espalham pelo chão e dizem que é para secar, mas não é verdade, mãe: Eles mandam a gente andar por cima com os pés sujos de areia ou barro e ainda pedem para jogar pedrinhas no meio do arroz ou do feijão e depois eles ensacam de novo e, veja mãe, na hora de pesar tiram meio quilo de cada saca, e vendem como peso normal de sessenta quilos. Por isso não gostei de trabalhar lá! Isto é pecado, não é, mãe?
- É sim! Mas tu não dizias nada?
- Eu falava que era errado roubar, mas eles riam de mim e mandavam calar a boca até que um dia me mandaram embora porque eu jogava no lixo as cebolas estragadas que eles queriam misturar com as boas. Mãe, será que todos os donos de armazéns s fazem isso?
- Não sei! Mas se estes fazem, devem ter aprendido com outros.
- Por isso quero vender picolé: o “Seu Zeo” não é assim!
E Beto vendeu picolé pelas ruas de sua cidade por muito tempo. O menino tinha direito a um picolé a cada dez vendidos e ainda recebia uma pequena percentagem em dinheiro no final do mês, e quando no primeiro mês o seu patrão quis lhe fazer a entrega do primeiro pagamento, Beto disse, resoluto:
- - Não, “Seu Zeo”, eu não preciso de dinheiro! Minha mãe e meu pai é que precisam! Por isso o senhor deve dar a eles pessoalmente.
“Seu Zeo”, apreciava este coraçãozinho bonito e cada vez mais confiava neste “menino de ouro”, como dizia a seus pais.
- Inteligente, trabalhador, consciente! Um menino de ouro!
- Quantos picolés chupaste hoje? Perguntou um dia o seu pai.
- Nenhum!
_ Nenhum? Não vendeste nada?
- Vendi sessenta! Mas dei os picolés para as crianças pobres... Sabe, pai, eles não têm dinheiro para comprar!
- E nos outros dias também fazes isto?
- Mas em lugares diferentes! Tem muitas crianças pobres, pai... Sabe, acho que alguns deles não têm nem comida em casa e o picolé acaba matando um pouco a fome deles... Pai, por que existem tantas crianças pobres?
- Tem muitas razões para isto: Os pais são bêbados, viciados em drogas, preguiçosos, mal pagos por patrões gananciosos...
- O “Seu Nereu” é assim?
- Não! O “Seu Nereu” é trabalhador, mas sua esposa é doente!
- Dona “Varda” é doente?
- Sim e precisa de médicos e muito remédio, e isto é muito caro!
- E os filhos deles não ajudam?
- Eles trabalham também: o Tonho toca e canta na Rádio, mas ganha  muito pouco e mal dá para seu gasto pessoal e por isso também trabalha com o seu pai, varrendo as ruas da cidade.
- É! Eu vi os dois, pai, debaixo de um sol muito quente, varrendo as ruas. Mas o outro filho deles?
- Trabalha na fábrica, mas já é adulto e fica com o dinheiro para si, para o seu futuro...
- Mas ele não vê que a casa deles está caindo? Sabe, pai, eu já fui na casa deles: é de palmito! As paredes são de ripas de palmito e o telhado é das folhas1 E não tem “soalho”: o chão é barro puro!
- Assim tem muitos por aí afora!
- Pai e se eu vendesse os picolés que eu ganho e desse o dinheiro para eles, será que ajudaria?
- Hoje você teria dado seis reais: Já daria para comprar alguns pãezinhos!
Beto fez isto por alguns dias, mas eram tantos os meninos pobres que encontrava, que poucas vezes podia ajudar aquela família.
Repartia com todos.
Um dia, diante da Igreja, viu algo que lhe chamou a atenção: Alguns mendigos sentados na escadaria pediam esmolas e resolveu falar com alguns deles.
- O senhor não trabalha?]
- Sou doente e tenho família a sustentar.
- E todos os doentes que tem família para sustentar, precisam pedir esmolas?
- É a única maneira...
- Mas o Prefeito não ajuda? E os vereadores?
- As leis não são para os pobres!
O menino não entendeu!
- Eu ouvi o Áureo dizendo, na campanha política: Não haverá pobres nesta cidade...! Ele é um mentiroso! Agora é prefeito e não cumpre o que prometeu? O senhor votou nele?
- Ele dizia palavras bonitas. Prometeu tanta coisa boa. Queria votos!
- É homem sujo! Será que todos os políticos são assim?
- Não sei! Mas acho que a maioria pensa em si próprio, no seu enriquecimento...
- Olha lá! O Prefeito no meio do povo, rindo para todos, abraçando todo mundo... Ei, Áureo! Ei, Prefeito! Aqui! Vem aqui!
- O que é, garoto? 
- Este pobre precisa de ajuda...
- Agora não tenho tempo de falar: A Missa já esta começando...
- “Seu” pobre, para que serve a Missa para ele?
- Para que possa mostrar-se como bom homem, religioso...
- Será que este não é um daqueles que Jesus falava: 
 - “Sepulcros caiados! Raças de víboras...”
E todos os dias, Beto percorria as ruas de sua cidade e aprendia ou reprovava as coisas dos adultos, e durante toda sua vida NUNCA chupou um picolé ou provou um sorvete! De vez em quando levava uns para seu pai e mãe, mas ele mesmo, jamais se serviu de um sequer! 
- Sabe, mãe, eu fico tão feliz quando eu vejo a alegria das crianças, quando lhes dou um sorvete ou picolé.
- É! As crianças não precisam de muita coisa para ser felizes! Precisam de alguém que olhe para elas, que riem com elas, que se alegram por elas...
- Isto é bonito, mãe! A senhora tem um coração tão bonito!
- Você o tem filho! Você o tem! Conserve-o assim!
O menino cresceu, trabalhou e viveu em outros lugares. Nunca mais vendeu picolé! Estudou viajou, e num dia, quando voltava de uma de suas viagens, encontrou-se com seu amigo antigo, o seu ex-patrão:
- “Seu Zeo”! O senhor por aqui! Quanto tempo?
- Quase trinta anos... Como vai você?
- Vou bem, “Seu Zeo”...
- Também estou bem! Sabes, agora eu moro aqui na praia e tenho um Bufê de Sorvetes. E aqui, passo o meu tempo! E sabe o que mais? Eu sempre tive a esperança de um dia te encontrar e te recompensar por tudo o que fazias em teu tempo de criança...
- E o que eu fazia?
Trabalhavas para os pobres! Nunca provaste um só sorvete! E sei que gostas... Então, quero hoje te recompensar: Vem para dentro! Senta-se à mesa. São quarenta e seis tipos de sorvetes que tenho aqui. Sirva-te à vontade! Este é um presente meu!
- Finalmente vou provar picolés e sorvetes! Que Santo Homem é o “Seu Zeo!”
E se serviu: encheu varias taças com vários sabores e varias cores. Sentou-se à mesa e começou a servir-se, levando a colher à boca...
Do lado de fora, varias crianças, caras sujas, maltrapilhas, tinham seus narizes “colados” na vitrine a observarem de perto, tanta guloseima, tantos sorvetes de tantas cores...
Levantou-se e foi até a porta:
- Venham, crianças, sentem-se e sirvam-se à vontade!
Deixou um xeque em branco sobre o balcão e saiu...
Nunca mais o “Seu Zeo” o viu, desde aquele dia em que as crianças se saciaram à custa daquele “menino” e, jamais teve coragem de preencher o xeque por ele deixado!
- Isto é uma relíquia! É Sagrado! Deus seja louvado.
Amém!
 
Cláudio Heckert.; 
 


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