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08/07/2009
O Inferno


O INFERNO


    Continuamos com a disposição de apresentar o leitor os escritos de Fanny Moisseieva, resultantes de suas visões havidas durante o sonho letárgico de nove dias pelo qual ela passou. Aqui apresentamos o inferno com toda a sua horripilancia. Muitas pessoas, santos e profetas, também leigos, já tiveram pela graça de Deus estas visões de horror. Cada um a descerve de seu modo, uns num ambiente mais amplo, outros em mais restritos, o certo é que o inferno inteiro é uma câmara de horrores, com bilhões de departamentos de tortura.


As visões de Fanny são mais uma tentativa de dar ao leitor uma idéia do que significa aquele lugar. Cada homem pagará de acordo com o volume e a intensidade de seus pecados e com seus atos de maldade, ninguém menos, ninguém mais do que deve. Há muitos milhares de níveis de sofrimento, porque a Justiça Eterna de Deus, até ali se faz presente e é obedecida em seus limites. Ou seja: o poder de Deus é tão imenso, que até mesmo naquele Lugar onde nunca mais se poderá saber Dele, ainda assim ali se cumpre a vontade Eterna do Criador. Eis porque ela vai descrever o tormento de alguns grandes pecadores, e como servirão de repasto ao inferno. Ao longo do texto iremos fazendo alguns comentários, explicando os números de ordem.


Fanny Moisseieva


MEU SONO LETÁRGICO DE NOVE DIAS


PARTE IV – O INFERNO


Advertências da autora


Há homens que dizem: se Deus é verdadeiramente misericordioso, não pode martirizar as almas humanas no inferno, quanto mais eternamente. Talvez, querido leitor, você mesmo terá pronunciado estas amargas palavras muitas vezes, ou bem teve tal pensamento, sem pensar que Deus havia descido do Céu à terra precisamente para redimir os homens do inferno. Ele havia descido para aliviar-nos o caminho até o luminoso reino dos Céus e armar-nos do sinal da Cruz contra Satanás.


Mas a isto se pode contrapor: “– Porém, por quê, então, o Senhor permite a existência de Satanás e por que Ele o criou?” Deve se lembrar que Satanás tinha sido criado como anjo puro e que só mais tarde se afastou de Deus com todos os seus sequazes. Sendo um espírito incorpóreo, ele, por isto só é imortal, conseqüentemente eterno.


Assim é o homem. Nasce um menino puro, sem pecados (Sim com o pecado original), porém mais tarde se afasta tantas vezes de Deus, não reconhece Sua Vontade, rebela-se contra Ele e atua mal. Tal homem, depois de sua morte inevitável, certamente vai ao inferno, como havia dito Nosso Senhor: “Ao fogo eterno, preparado para o diabo e para seus anjos” (São Mateus 25, 41). Entretanto, não obstante estas santas palavras, há homens que decididamente refutam a doutrina do inferno, contrariamente aos ensinamentos de Jesus Cristo, o qual prevenia os homens para que não fossem parar neste lugar de martírio.


Segundo alguns sábios, este martírio não seria eterno; entretanto, deve-se advertir que na Epístola aos Hebreus (1, 8) diz-se: “Pelos séculos dos séculos, o cetro de seu reino é um cetro de retidão”. As mesmas palavras estão no Apocalipse (20, 10), onde se diz claramente: “e serão atormentados dia e noite pelos séculos dos séculos”.


O inferno é terrível! É terrível porque já significa a separação eterna de Deus e esta separação não é a simples inconsciência, muito mais é o sofrimento físico neste lugar: “... onde seu verme não morre e o fogo não se apaga.” (São Marcos 9, 48) No Evangelho de São Mateus (8, 12), diz-se: “ali haverá pranto e ranger de dentes.” Também o Santo Evangelho ensina:E além de tudo isto, entre nós e vocês há um grande abismo, de maneira que aqueles que queiram passar daqui para vocês não podem nem daí passar para nós” (São Lucas 16, 26).


Serve de exemplo para todos os pecadores a sorte de um rico que ouvia tudo e, encontrando-se no inferno, ouvia chegar desde o paraíso as palavras de Abraão: “estava em plena consciência, mas atormentado terrivelmente” (São Lucas 16, 19-23). Não há escrito sagrado no qual se mencione qualquer transformação no inferno depois da ressurreição de Cristo.


I


Desta vez fomos separados do planeta rígido e gélido, de novo voamos para cima. Dirigimo-nos para um novo planeta, todo reluzente, e à medida que nos aproximávamos, encontrávamos uma atmosfera cada vez mais incandescente. Evidentemente, uma força desconhecida, que emanava do próprio planeta, produzia este fenômeno.


Não sei porque, mas eu sentia uma estranha turvação na alma, à medida que diminuía a distancia que nos separava dele; a vivísima luz que dele emanava me cegava os olhos e todo o corpo sentia um calor insuportável. Finalmente, chegamos ao alto de uma montanha que se erguia sobre todo o planeta. Desde este topo, podia-se alcançar um amplo horizonte. À direita e à esquerda, entre cadeias de montes, via-se vulcões ativos, que lançavam fogo em grande quantidade. Nuvens de  fumaça negra e torrentes de fogo saíam de suas crateras, como de gigantescas bocas abertas e envolviam tudo com uma neblina espessa, com pedras candentes e a lava que saíam das entranhas da terra. Canais sinuosos de metal fundido desciam lentamente, com uma cintilação estranha, desde os cumes dos vulcões até os vales.


Tudo ao redor estava imerso na escuridão. Por algumas horas apareceu o disco de um astro, semelhante ao nosso sol, mas que aparecia coberto por um denso véu, emanava uma luz fraca, crepuscular; passado este breve período, caía de novo a longa e triste noite, durante a qual se viam saltar aqui e ali as pequenas luzes errantes de chama maléfica, as quais apareciam com intermitência extraordinária, sempre crescente e depois desapareciam completamente.


Cada vez eu me sentia mais angustiada e triste. Não consegui descobrir nenhuma vegetação, exceto alguns arbustos sem folhas de uma cor cinzenta e de uma forma estranha trepando aqui e ali pelas planícies e os vales. Virando-me para tras pude descobrir algum rio. Suas águas lodosas seguiam lentamente, como apáticas. Por toda parte reinava a desolação e a escuridão. E tudo me parecia deserto, mas meu companheiro, de repente estendeu-me o braço, indicando-me um dos profundos precipícios e disse: “– Olha!”


Fixando a vista naquela direção, vi algumas figuras que se moviam rapidamente em meio a luzes imperceptíveis. Desde a altura onde eu observava tudo, pareciam-me pequenas como formigas. Começamos a descer, sempre nos aproximando àquele precipicio, e quando estávamos próximos paramos diante de uma rocha escarpada.


“– Todos estes são pecadores”, disse meu companheiro. “– Agora você ficará só entre eles, sem mim, mas se acontecer qualquer coisa a você, mesmo que você se assuste, não deve rezar, porque aqui é severamente castigado quem dirige uma oração a Deus. Eu não estou certo disso, mas creio que lhe acontecerá algo também se você rezasse. Não esqueça que este é o reino dos espíritos do mal. Não deve rezar nunca, porque a oração deste reino não chega a Deus.”


“– Por quê? Por que nunca?” Eu não consigo comprender como é possível que a oração possa ter obstáculos.” E o companheiro me respondeu: “– O obstáculo consiste na graça de Deus que não chega até as almas dos pecadores. Assim como os homens não podem falar à distância sem o rádio, assim também a oração sem a graça do Espírito Santo não pode chegar a Deus.” E desapareceu. Então, ainda mais de perto, eu vi como os pecadores dançavam loucamente uma dança selvagem; dançavam desesperadamente e parecia que sua dança não devesse nunca ter fim. Os demônios arrastavam homens, mulheres e idosos aos lugares mais abertos para atormentá-los ali e quando estes, esgotados, caíam ao chão proferindo horríveis imprecações eram agarrados pelos pés e atirados a um turbilhão.


Deixei aquele desfiladeiro e comecei a descer até a planície. Mas aqui vi um tórrido e vastíssimo deserto e aqui também a terrível dança dos miseráveis pecadores, que não parava um instante enquanto eles derramavam lágrimas dilacerantes. Observando-os mais atentamente, vi que junto a eles dançavam também espíritos malignos rindo selvagemente sem nunca se cansar. Eles obrigavam as infelizes almas a girar cada vez mais velozmente, gritando sem interrupção: “– Alegres, todos alegres!” Alguns, dando saltos, se elevavam sobre a multidão dos pecadores e gozavam com a visão da gente nua e martirizada, com os cabelos revoltos, sem lavar nem pentear há séculos, nos quais havia cravados espinhos.


Que terríveis e poderosos eram aqueles espíritos malignos! Faziam os pecadores se desesperar. Atando-os com ramos espinhosos e fazendo-os dar voltas assim sobre as areias ardentes, cuspindo-lhes nos olhos, agarrando-os pelos cabelos, abrindo-lhes a boca à força até rasgá-la, golpeando-lhes violentamente com pedras, cegando-lhes e fazendo-lhes caminhar, depois destas e outras torturas inauditas, com aquele sofrimento, por precipícios cujo fundo estava cheio de pedras afiadas como navalhas. E enquanto eles caminhavam, os demônios montavam ao pescoço de cada pecador, pegando-os pelos cabelos e guiando-os assim pelo doloroso caminho. Se alguém conseguia soltar-se do espírito maligno, imediatamente lhe pegava outro e os sofrimentos recomeçavam, ainda mais penosos e intoleráveis.


Alguma vez também, aqueles demônios horríveis mostravam ao pecador os rostos de seus parentes e de outras pessoas queridas que se encontrava sofrendo junto a ele no inferno, ou começavam a analisar o passado terrestre de suas vítimas, mas limitadamente aos pecadores e às más ações. Faziam o pecador ter as visões de todos os seus pecados terrestres pelos quais haviam sido condenados, de modo que a estância infernal se tornava ainda mais intolerável.


Eu proseguia meu caminho, deixando atrás o horrível, tórrido infinito deserto e os pecadores dançantes ao som das risadas sarcásticas dos demônios. E cheguei logo a um vale cheio de pedras onde, de vez em quando, passava um formidável furacão que levantava nuvens de poeira e lançava ao ar as próprias pedras. Os espíritos infernais perseguiam aqui a uma multidão de seres cujos semblantes conservavam já bem pouco da natureza humana: estavam extremamente magros e seus braços pendiam inertes; todo seu aspecto denotava sofrimentos inimagináveis. Torturados pela sede, arrastavam-se com dificuldade, em silêncio, com a boca cheia de poeira. Ao redor reinava um cheiro horrível e nuvens de fumaça negra envolviam tudo. Entre estes pecadores, alguns lutavam violentamente a pesar de saberem dos terríveis castigos que os esperavam; porém eram já indiferentes a tudo porque estavam habituados a ser atormentados continuamente e porque haviam compreendido que, ali no inferno, já não podiam ter esperança alguma, assim já não reclamavam mais.


Não podendo suportar mais aquele terrível furacão de poeira, segui adiante, caminhei longo tempo e, finalmente, deparei-me à beira de um charco lodoso. E pareceu-me que nele chafurdavam seres de aspecto repugnante. Vi depois como os pecadores, torturados pela sede, corriam até aquele tanque pestilento e bebiam daquela água fétida. Dava-me horror olhar aqueles pecadores tão continuamente torturados e sempre rodeados dos demônios, furiosos, perversos e trapaceiros. Com grande medo e quase parando a cada passo, avancei até as rochas que se perfilavam à distância e decidi esperar sobre elas o retorno do meu companheiro. Ali escolhi um lugar, o mais tranqüilo, e cansada das impressões sofridas, sentei-me sobre as pedras.


De repente, um misterioso alvoroço sobressaltou-me. Vinha de um lugar pouco distante. Aguçando o ouvido, percebi suspiros profundos e penosos. Voltei-me e olhei: a poucos passos, aos pés de uma enorme rocha cinza, jaziam pecadores esgotados, tristemente com o olhar fixo na noite impenetrável. “– Sempre a noite, somente a noite, e nunca a luz! É possível que não chegue nunca o amanhecer?”, perguntou um deles, lembrando do sol e da primavera... e, ante sua mente, passaram as visões da vida vivida; também os outros começaram a lembrar o tempo passado na terra enquanto viviam, sentiam e amavam e cada um deles tentava aliviar, ainda que fosse um só minuto, com as lembranças da vida passada, sua alma sofredora. De suas conversas se deduzia que o passado estava sempre vivo neles, mas que os espíritos do mal não lhes permitiam sonhar nem esquecer os sofrimentos.


Rapidamente, de trás das rochas altas e escuras, apareceu um fogo vermelho e queimou terrivelmente as almas, chegadas aqui para descansar. No Inferno, não pode haver paz. E eu, estava desejosa de silêncio e queria fugir de todos aqueles horrores, decidi transportar-me a outro lugar.


Diante de mim se estendia uma planície. Encaminhei-me por ela, passando as trevas que por todos os lados me rodeavam. Os espíritos malignos observavam àqueles que passavam diante deles e perseguia-lhes selvagemente com açoites que levavam nas mãos. De vez em quando, da terra saíam línguas de fogo de todas as cores, que por um instante iluminavam sinistramente as silhuetas. E ouvi um canto, triste e melancólico, no qual tremiam as lágrimas e ouvia-se um sofrimento abafado e uma dor inconsolável.


Aproximando-me mais, vi sob a proteção de uma rocha os que cantavam com tanta tristeza. Suas faces eram de cor cinzenta e eles mesmos sem força, ofegantes, empurravam com seus braços esqueléticos uma enorme rocha de grande peso. Este trabalho seu era perfeitamente inútil em si mesmo e isto aumentava ainda mais seus sofrimentos. Sobre suas cabeças caíam nuvens ardentes, atravessadas de flechas de fogo e nuvens de fumaça, misturadas com faíscas. Eu me senti mais aterrorizada e senti um desejo enorme de sair o quanto antes daquele lugar tenebroso.


Enquanto isso ouvia um ruído que procedia do fundo da terra. Ante mim, abriu-se uma inclinada encosta, que comecei a descer com muito cuidado. No ar, sentia-se um intenso cheiro de enxofre e redemoinhos de poeira ardente tornavam difícil a respiração. A muralha cinza rochosa se elevava quase verticalmente sobre minha cabeça e, do alto, caíam como chuva faíscas incandescentes. O vento seco e turvo não refrescava nada e vi um espetáculo novo e horrível. Os miseráveis pecadores, arrastados pelos demônios, fugiam velozmente diante de nós com o ruído infernal que os perseguia e, gritando de terror, protegiam a cabeça enquanto alguns deles caíam por terra, esgotados pela sede, com o rosto na poeira. Estariam dispostos a suportar qualquer martírio, com tanto de obter uma gota de água, com a qual refrescar a boca queimada pelo terrível calor. Mas não há para eles nem sequer uma gota de água e isto continuamente aumentava seu sofrimento sem um final possível.


Os espíritos infernais os vigiavam e, ao cair um, estavam prontos para golpeá-lo cruelmente com seus pés achatados até que se levantava e recomeçava a corrida, docilmente. E eis aqui que, enquanto eu observava aquele espetáculo horripilante, apareceu diante de mim meu companheiro com sua voz maravilhosa e fascinante: “– Você teve medo?”, perguntou-me e eu, a sua pergunta, não soube responder outra coisa senão: “– É terrível!” E ele: “– Agorra deixaremos este lugar e voaremos a outros planetas!”


Começamos a subir a uma velocidade ainda maior do que a do vôo anterior. O ar se tornou cada vez mais agoviante e o calor se tornou insuportável em certo momento. De longe apareceu um astro incandescente que foi pouco a pouco ficando maior. Sem interromper para nada nosso vôo, atravessamos uma zona iluminada por uma luz violácea, e cada vez sentíamos mais que nos queimava o fogo que emanava daquele gigantesco planeta. Dirigiamo-nos até ele. Um pouco mais e o alcancaríamos. E pareceu-me que o céu oscilava e se agitava como se respirasse; o próprio planeta não me pareceu denso como nossa terra, e sim composto de gás denso, extremamente incandescente.


Contudo, quando descemos sobre o planeta, convenci-me que em parte minhas suposições estavam erradas: de fato, aqui e ali havia também terra firme sobre a qual vagavam luzes estranhas; do alto chovia uma estranha claridade láctea, ao redor reinava a tristeza e do solo ardente saía um calor indizível que sufocava.


“– Nem sequer aqui existe a felicidade - disse meu companheiro. A felicidade aqui não existe. Os espíritos do mal trazem aqui as almas dos pecadores para fazer-lhes sofrer novas e mais refinadas torturas, mais dignas de seus pecados.”


Por todos os arredores reinava o caos e, entre o rumor dos elementos enfurecidos, ouvia-se um gemido triste semelhante ao lamento de muitas vozes. E apareceu diante dos meus olhos uma ladeira plana que descia até um lago, que parecia de estanho fundido. Por todos os arredores voavam insetos venenosos de aspecto repugnante, de cujas picadas os pecadores buscavam refúgio escapando pelas rochas ao redor. Alguns pecadores eram seguidos de demônios que, providos de poderosos açoites os açoitavam, entravam nas cavernas, mas em seguida se viam obrigados a sair delas e corriam maltratados e famintos em direção ao lago ardente, onde se precipitavam chorando e gritando: “–  Onde estás, ó morte? Ó morte, amiga desconhecida!”


Mas a morte não existe, só a vida existe, vida eterna de alegria para os homens piedosos, vida eterna de tormento para os pecadores. E aqueles miseráveis continuavam retorcendo desesperadamente as mãos, invocando em sua loucura a morte inexistente.


II


Depois de ter observado tudo isto, começamos a descer. Aos pés da margem escarpada, descobrimos enormes cavernas, escavadas entre as rochas. Duas das mais amplas tinham a entrada obstruídas por penhascos, e delas saíam um ruído ensurdecedor, gritos selvagens, uivos bestiais e assobios estridentes. Que agitado era aquele recinto infernal! Aqui e ali, vi espalhados arbustos cobertos de espinhos, de lodo viscoso e tufo negro; também havia alguma árvore sem folhas. Sobre nossas cabeças passavam voando horríveis monstros, que contribuíam a tornar o panorama mais sinistro.


“– Hoje – disse-me o companheiro - Satanás celebra no inferno seu banquete anual. Guarde bem o que você vir”.


E vi como as entradas das cavernas começaram a abrir-se lentamente. Delas surgiam línguas de fogo. Alguns espíritos malignos entraram para tirar aos pecadores mais ferozes, conhecidos em todo o mundo.


“– Por um compreensível desejo de Satanás – explicou-me o companheiro – alguns pecadores esperam séculos e séculos antes de poderem participar nesta festa; outros pelo contrário são admitidos em seguida. Esta festa se celebra uma vez ao ano e precisamente no dia em que o Senhor expulsou os anjos maus. Naquele dia, Satanás, que foi anjo bom até ter a temeridade de rebelar-se contra Deus, volta a sentir com particular agudeza todo o horror de sua queda. Nesse dia, ele busca distrair-se como pode, organizando uma festa em seu tétrico reino. Mas nada pode aliviar seu afã e ele sofre naquele dia por ter recusado as alegrias do Paraíso e por não ter domado seu orgulho ante o Senhor.”


Logo, por uma desconhecida força foi lançada para fora da entrada da caverna uma bela mulher, com os braços estendidos para a frente e seu cabelo em chamas. Em seus olhos, de um azul-escuro, parecidos a safiras, ardia uma maldade inumana; seu cabelo, de um vermelho vivo, estava solto. Toda recolhida feito um novelo sobre si mesma, desenrolou-se como uma serpente e escondeu-se, com a cabeça inclinada, próximo à porta.


Entre as chamas, apareceu então outra mulher (1), de cabelo mais negro do que a noite, como dois enormes carvões brilhavam seus olhos. Lenta e majestosamente, dirigiu-se à outra mulher que, chorando e tremendo, havia se escondido em uma sinuosidade da rocha junto à entrada infernal e, colocando uma mão na cabeça, ficou imóvel naquela postura.


(1) Este mulher pode ser identificada como uma rainha da Rússia, mulher devassa e depravada, verdadeira Messalina, que era capaz de enfileirar 20 soldados por dia, todos os dias, para manter relações com ela. Chegava a fazer isso por até 36 horas ininterruptas, apenas para se considerar com mais furor uterino que as mais terríveis prostitutas dos arredores de Moscou. 


E desde a caverna vizinha saiu um velho alto, todo encurvado com uma grande barba branca e sobrancelhas espesas (2). Caminhava sem pressa, dirigindo-se até a parte oposta onde se encontravam as duas mulheres. Chegando a certo ponto, deteve-se. Sua aparição não despertou surpresa alguma entre os espíritos infernais, mas não se aproximaram dele. E ele, levantando a cabeça, olhou ao redor. Tudo nele mostrava uma forte determinação; seus olhos expressavam uma inteligência incomum, mas ao mesmo tempo uma tristeza resignada em uma profunda pena. Inclinou a cabeça no silêncio e a barba branca cobriu todo o seu peito.


Depois dele, arrastado pelas mãos por uma manada enfurecida de demônios e com sinais de golpes nas costas, apareceu um homem mais velho, de estatura baixa, era robusto, tinha a cabeça calva e grande (3). Os espíritos malignos o golpeavam furiosamente sobre o rosto, gritando-lhe nos ouvidos: “– Você que não acreditava em nada? Você que pensava que a vida só existia na terra e arruinava sua pátria, atormentava e matava seu próximo sem temor de um dia prestar contas disso! Agora verá que não é assim! O próprio Satanás inventará para você os sofrimentos mais atrozes; agora pelo contrário, te levarão a inclinar-se ante ele!”


(2)    Pelas descrições a seguir ele será indicad como o ateu Karl Marx.


(3)    Este é mais facilmente identificado com Lênin.


E ele, todo curvado sobre si mesmo e sem opor resistência alguma, apertava o passo detrás deles. Os demônios não o arrastaram até os pecadores que o haviam precedido, sim em direção à abertura de uma caverna situada em frente às outras. Naquele mesmo instante, do interior da caverna, elevou-se um terrível rumor, um espantoso grito misturado com risos selvagens e assobios estridentes. De vez em quando, entre todo aquele bulício, elevava-se um gemido longo e piedoso.


Eu olhei atentamente naquela direção, também os pecadores tinham o olhar fixo sobre aquela entrada. E dela saiu uma multidão de certos seres horríveis que se contorciam; pouco tinha de aparência humana, acuados pelos golpes. Assim se aproximaram ao pecador calvo e lançaram-no aos pés ao recém-chegado; este se levantou olhando ao seu redor com ar aturdido e sempre tremendo, pôs-se ao lado do homem calvo. Tinha a cara estreita, com cavidades e pômulos salientes, um nariz muito fino, era de estatura um pouco mais alta que a média.


O velho levantou a vista e o olhou com arrepios enquanto os dois pecadores, com indescritível desdém, voltaram-lhes as costas.


Naquele momento, escutei aproximar-se de cada lado um ruído, primeiro apenas perceptível, depois cada vez mais forte. O ruído mudou depois para um bater de asas. Uma multidão de espíritos horríveis voadores se aproximaram lentamente dos pecadores, e diante de mim se formou um emaranhado vivente que se levantou e logo se precipitou vertiginosamente para baixo, desaparecendo entre as trevas.


Diante das cavernas ficou tudo deserto, as horríveis portas estavam fechadas, já nem se via um pecador ou um demônio.


Caminhamos ainda mais, e de repente surgiu ante nós uma coluna alta de fogo, da qual nos aproximamos. Parecia-me que aquela coluna, como um farol luminoso, dissiparia também a lembrança dos horrores vistos, e que encontraríamos lugares mais pacíficos, porém eu esquecia que no inferno não pode haver paz nem tranqüilidade. E, de fato, a coluna de fogo dissipou minhas esperanças, não vimos paz nem felicidade, e sim um espetáculo ainda mais horrendo nos foi apresentado.


Quando estivemos perto, vi que o negro e horrível abismo estava agitado como por um violento temporal, nuvens acesas exalavam vapores de enxofre, e pouco depois nos encontramos entre as chamas de um lago de fogo onde se moviam sombras. Ó que grande era seu desespero, que grande e terrível seu tormento! Os demônios íam aos milhares daqui para lá entre elas, como se chegassem desde longe para contemplar avidamente as linhas sinuosas e retorcidas das imagens incorpóreas entre os rubros da chama púrpura. Mas nós, sem nos determos, passávamos voando mais longe, encontrando sempre novas sombras.


“– Agora – disse-me o companheiro - você deve ficar novamente só. Seja corajosa e não tenha medo ainda que lhe ocorresse algo incomprensible. No mais se qualquer perigo lhe ameaçar, eu virei sempre a tempo.” Dito isto, desapareceu.


III


Observando as torturas dos pecadores que se encontravam entre as chamas e sentindo um calor quase insuportável, sentia-me asombrada que o fogo infernal não queimasse tudo e a todos. Era evidente que o fogo não podia destruir e queimar os pecadores que se encontravam entre as chamas, como tivera feito com homens comuns, ou mesmo o próprio fogo era de tal natureza que, ainda procurando tormentos inenarráveis, era impotente para destruir tudo.


Ao instante me chegou ao ouvido o eco de um coro montanhês. Escutei com maior atenção e pareceu-me que aquele canto vinha de algum lugar debaixo da terra. Diante de mim começava uma baixada. Em todos os arredores nas rochas havia fissuras muito profundas. A dois passos de distância não se via, porém abaixo brilhavam luzes e quanto mais descia mais se ouvia o canto de um coro que, ao julgar pelas vozes, devia ser muito numeroso, mas muito desafinado. E cada vez se faziam mais vivos os fogos. Finalmente, depois de uma descida que parecia não ter fim, encontrei-me em uma planicie imensa e completamente deserta, rodeada de montes que se erguiam assumindo as mais estranhas e fantásticas silhuetas que mente humana jamais tenha podido imaginar. Na base dos montes cresciam estranhíssimas plantas espinhosas, que agitavam os ramos como se fossem tentáculos. Pela esquerda apareceu um charco rodeado de uma zona de musgo negro, que se movia também, parecia suspirar.


Pouco depois cheguei a outro charco mais, não longe de mim observei um estreito feixe luminoso e, aproximando-me, descobri uma grande greta e uma nova baixada que conduzia à misteriosa luz. Segui por aquele novo caminho e comecei a descida por aquele abismo, cheio de mistérios e incertezas, e que parecia não ter fim.


À medida que caminhava, dava-me conta de que o sendeiro se convertia em um longo caminho ao final do qual havia uma porta que dava acesso a um lugar desconhecido para mim. Daí saía um oceano de luz ofuscante e ouvia-se ainda mais forte o canto que se fazia cada vez mais ressoante e que, de vez em quando, era interrompido por gritos ensurdecedores. Recorri depressa aquela zona e encontrei-me na entrada, onde fui cegada por inúmeras luzes.


Vi uma sala imensa na qual se entrava por milhares de portas. No meio havia uma grande extensão livre, semelhante à arena de um circo. No centro daquele espaço se levantava um magnífico trono, mas extremamente tétrico. Um teto negríssimo, em forma de cúpula, com reflexos metálicos, completava a uma grande altura, aquela sala. Ao redor do trono se moviam, sem fazer ruído algum, sombras negras de formas terríveis e horripilantes. Em todo os arredores havia um grande anfiteatro para os pecadores dos quais ali havia uma grande multidão. Parecia que todo o anfiteatro havia sido um grande formigueiro e de todas as partes se podia ver com toda claridade o trono que se elevava no centro da arena. Ao redor elevavam-se gigantescas colunas luminosas que iluminavam todo o ambiente com uma luz sinistra.


À esquerda do trono, meio caída por terra, estava uma belíssima mulher, e o negro do trono fazia um esplêndido contraste de cores com o vermelho-cobre de seu cabelo, excitante como a seda. Delicada e graciosíssima, assemelhava-se a uma estatueta saída das mãos de um escultor genial.


À direita do trono estava, pelo contrário, uma mulher de olhos negros e de porte soberbo; seu cabelo harmonizava perfeitamente com o trono escuro, enquanto que seus olhos ardentes brilhavam de ódio e de maldade e pareciam lançar chamas. Estava radiante em sua atitude altiva e em seu desprezo pelos milhares de olhos que estavam dirigidos a ela. E não se parecia nem sequer a uma estatueta qualquer, podia-se dizer que era a esfínge de uma mulher de sangue real, plasmada por um artista imortal. Eu reconheci sem esforço algum as mulheres que havia visto retiradas das cavernas para a festa de Satanás.


Quase toda a arena em frente do trono estava agitada com os pecadores. Não eram, entretanto, pecadores normais nem para eles estava reservado o anfiteatro, sim aqueles que haviam manchado sua existência terrestre com os pecados mais infames. Encontravam-se todos reunidos em um lugar, sem distinção de posição ou de fortuna. O pecado havia igualado a todos.


Vi também o repugnante velho calvo e seu discípulo, aquele de tipo polonês, uma verdadeira besta humana. Um pouco separado estava o velho grisalho cujo rosto denotava uma tristeza invencível e uma dor infinita, parecia que recordasse as palavras do Evangelho: “Porém quem escandalizar a um destes pequenos que crêem em mim, melhor seria que pendurasse uma pedra de moinho ao redor do pescoço e fosse atirado ao mar”, e parecia que só agora tivesse compreendido o significado daquelas palavras.


De repente, sentiu-se uma grande sacudida subterrânea, a terra tremeu, tudo balançou e as colunas iluminadas ainda mais resplandecentes. Depois se desencadeou um furacão, ao que seguiu um coro de lamentos e de gemidos. E entre numerosos aplausos dos demônios e entre gritos irracionais apareceu subitamente Satanás, todo envolto em nuvens de fumaça muito densa. Iluminado por uma luz sinistra, com o olhar fixo, perdido no espaço, riu forte e maldosamente e naquela risada havia algo terrível, de tal modo que todos os pecadores se voltaram para ele e olharam-no com terror, privados já de vontade, sem força e sem qualquer esperança de salvação. O trono de Satanás estava rodeado de uma multidão de espíritos malvados cujos olhares ferozes aterrorizavam. Entoaram seu canto infernal, em cada palavra do qual havia o eco de uma ameaça e en cada frase a promessa de novas e inenarráveis torturas. Este canto enchia as almas dos pecadores de terror sem limites, mas os demônios cantavam cada vez mais forte e Satanás parecia se satisfazer com este canto porque sorria maldosamente.


Diante do trono, entre as filas de pecadores, havia muitos que na terra tinham sido famosos por sua sabedoria e erudição, mas que no inferno já não havia necessidade de tudo isto, eles não se distinguiam em nada dos outros, e pelo contrário, como eles, tremiam ao escutar o canto infernal, ao mesmo tempo não perdiam de vista a Satanás.


Satanás parou de rir. Mas, parecia-se a um homem? Sim, ele se parecia e, ao mesmo tempo, era um ser completamente diferente, misterioso e insensível. Toda sua figura mostrava uma incrível auto-confiança e uma consciência da própria força, mas seu rosto não mostrava alegria. De gigantesca estatura, esbelto, bronzeado, tinha um nariz afilado entre dois grandes olhos negros e profundos, que brilhavam como fogos sob o arco das sobrancelhas oblíquas e estreitas. Severo e rogado, sentava-se silenciosamente em seu trono, sobre o qual luzia uma estrela vermelha de cinco pontas.


Mantinha-se imóvel, como esculpido em bronze, com suas duas asas abertas semelhantes a tecidos de veludo negro, que se separavam ameaçadoras por detrás das costas. Suas belas pálpebras curvadas escondiam a expressão precisa de seus olhos, mas seu rosto de perfil clássico escondia um pensamento atormentado. Parecia que naquele dia, aniversário daquele outro em que há milhares de anos atrás foi expulso por Deus, Satanás recordasse seu passado, quando também ele era um anjo bom alheio a todo mal. Seu rosto expresaba um secreto tormento enquanto uma ruga de longas datass lhe Francia a testa e as gigantescas asas negras abaixavam cada vez mais até dobrarem detrás dele, como ocorre com uma bandeira golpeada pela tempestade.


Então Satanás levantou as pálpebras e vi seu olhar ameaçador que continha em si um oceano de maldade e de ódio. A multidão de espectadores a fixou: que olhar era aquele! Quanta perfídia e quanto ódio! Assim se ergueu em toda sua estatura gigantesca, em toda sua misteriosa essência o príncipe do mal e do pecado.


Por todas as partes se fez um silêncio de túmulo. Satanás começou seu discurso que se ouvia distintamente em todos os ângulos do amplo salão: “– Eu vim para anunciar-vos novos tormentos”, disse, e sua voz se tornou ainda mais ameaçadora e estridente e seus olhos se acenderam ainda mais pelo ódio. “– Far-vos-ei sofrer tantas torturas que, em comparação com elas, as penas anteriores empalidecerão. Cada ano eles serão mais terríveis e assim será eternamente.”


Com um espantoso ruído se abriram detrás de suas costas as duas grandes asas negras. Que terrível era, imensamente terrível, o grande Satanás! Todos os seus demônios, ao ouvir-lhe prometer novas penas, estrondearam em risos de alegria. Os pecadores, pelo contrário, pressentindo os tormentos que lhes esperavam, se agacharam gemendo e chorando, enquanto as colunas de fogo brilharam com uma luz sangüínea, bem como se tornou sanguinolenta a estrela de cinco pontas colocada sobre o trono. Tudo se cobriu de vermelho.


Satanás se sentou novamente. Então vi que uma multidão de espíritos malignos se precipitar sobre a bela mulher de olhos negros, fazendo-a levantar a pontapés. Ela se pôs de pé como uma fera ferida e seus olhos relampejavam de ódio. Mas de improviso se direcionou sorrindo e com passo seguro, impressionantemente descarada, dirigiu-se até o trono, movendo os quadris, levantando seus seios alvos, ostentando sua graça e todo seu encanto pessoal. Mas Satanás riu com uma risada de zombaria e desprezo.


“– Na terra, você subjugava os homens com sua voz, com seus olhares, em uma palavra com seus encantos, e oferecia-lhes todas as alegrias da felicidade terrena: ouro e até o poder. Não deixava em paz aqueles que escolhia. Assegurava-lhes em seus cantos que ninguém a não ser você podia dar a felicidade plena. Desperdiçava o ouro e as riquezas sem se preocupar e se vangloriava de sua glória efêmera e do esplendor de seu palácio, e assim conseguia conquistar o coração que tinha escolhido. Mas depois saciada e indiferente, ordenava a morte sem piedade para aqueles que antes haviam sido seduzidos por você.”


Com um gesto da mão, Satanás chamou o mais nojento de todos os demônios e, apontando-lhe a pecadora, ordenou: “– Acaricie-o, beije-o e ame-o o quanto ele desejar. Vá com ele, eu não tenho necessidade de você. Mas eu gostaria muito de sentir o sabor de seus beijos e, para isso, aqui está meu pé.”


Ele ria, fazendo mover suas asas negras. Pálida, mordendo os lábios, a pecadora estava de pé sem mover-se, como uma estatua de mármore. Mas logo respondeu áspera e taxativamente: “– Nunca”, e em sua atitude orgulhosa estava belíssima. “–  Nunca? - perguntou Satanás, roxo de raiva - Mas você não sabe que minha vontade é capaz de domar qualquer orgulho?”


Vieram então os espíritos malignos que apanharam a pecadora e jogaram-na aos pés de Satanás e obrigaram-na a beijar-lhe o pé. Depois disto levantaram-na e levaram-na até a coluna ardente e apoiaram-na contra ela. Ficou negra pela dor insuportável e pelas queimaduras, mas seus olhos rebeldes, como antes, estavam fixos, terríveis em seu ódio, cheios de maldade, sobre Satanás.


Enquanto isso, alguns demônios que se encontravam junto ao trono agarraram os dois pecadores de má reputação, aquele calvo e aquele de traço polonês, e à força os arrastaram diante de Satanás e lançaram-nos aos seus pés. E olhando-os com um olhar irado e terrível, Satanás disse:


“– Vêem a todos estes milhares de pecadores que reuni aqui junto ao meu trono? Por minha vontade diante de vocês e deles passará agora uma parte de suas vidas de criminosos e eu verei de novo suas ações, e far-me-á gozar deste espetáculo como uma festa.”


Satanás fez um gesto e tudo ao redor ficou escuro. No fundo da sala apareceu um disco luminoso, como uma tela sobre a qual todos viram representada uma sangrenta batalha. Ouviu-se o estalido dos projéteis, o ruído das metralhadoras e o assobio das granadas. Viram-se regimentos com seus oficiais à frente, baterem-se com valentia sem igual. Viram-se cair os mortos e feridos e viu-se também como os soldados salvavam aos oficiais  e vice-versa, todos irmãos no ideal comum. E todos aqueles guerreiros pertenciam à mesma gloriosa terra à qual pertencia também o pecador calvo.


“– Eis aqui que se inicia o período de suas inumeráveis feitorias”, disse Satanás. Ouvindo-se estas palavras, o pecador calvo que se encontrava aos pés do trono, começou a gemer penosamente, e ao mesmo tempo sobre o disco branco apareceu seu rosto, já suplicante, já fechado, o rosto sobre o qual se refletia o espanto e o nascente triunfo; e ao redor dele tudo era escuridão semelhante a uma parede negra, impenetrável. Neste momento, a cena da batalha mudou rapidamente. Ouviram-se  novamente canhonaços e o ruído das metralhadoras. Depois apareceu uma praça sobre a qual se erguia um palácio todo de pedra vermelho-escura. No centro da praça surgia uma coluna alta e elegante sustentando a estátua de um anjo. Toda a praça estava cheia de uma multidão enfurecida que assaltava o palácio. E a cena mudou novamente: apareceram, solenes e maravilhosos, os salões do palácio. A plebe havia conseguido apoderar-se dele. Uma das salas tinha as portas defendidas por garotas: estavam armadas de fuzis e defendiam com desesperada coragem o palácio de seus soberanos. Entretanto, o povo conseguiu invadir todo o palácio.


Feras com uniformes de marinheiros ou soldados, com faixas ou cintos vermelhos e cintos para completar sua ostentação, foram e arrancaram os fuzis das fracas e delicadas mãos das heróicas jovens. Gritando e blasfemando alucinadamente, violaram até a morte às nobres heroínas. E sobre toda aquela orgia se ouviam gritos rudes que enalteciam a vitória conseguida: “– Viva a liberdade”. “Viva nosso líder.”


Vendo aqueles horrores e ouvindo aqueles gritos, o pecador calvo, prostrado aos pés de Satanás, chorou ainda mais tristemente. De novo tudo caiu na escuridão e sobre o fundo luminoso apareceu uma nova cena. Vi um grupo de prisioneiros, entre os quais se destacava uma mulher de alta estatura, de rosto altivo e maneiras nobres. Junto a ela se encontravam umas jovens e diante de todos, sentado numa cadeira, estava um homem de idade com um garoto de uns 14 anos sobre seus joelhos. Usava um simples uniforme de soldado, sem ombreiras, e calçava botas longas.


Senti-me atraída por seu olhar doce, tão suave e sonhador. Lembrei que já havia visto aquele olhar uma vez em outro lugar. Olhei melhor e vi e pareceu-me reconhecer meu imperador. De repente esta cena desapareceu de minha vista e vi uma pobre cabana no meio da qual estava de pé uma mulher magra como um esqueleto, vestida de trapos com o cabelo emaranhado e com olhos cheios de loucura. Aproximou-se tremendo do armário e do forno, procurando com as mãos trêmulas algo: naquele instante um menino gritou em seu berço e a mulher, rindo com uma gargalhada de louca, deu um salto até o berço, pegou o pequeno e, continuando a rir, estrangulou-o e lançou o pequeno cadáver em uma panela cheia de água fervendo que estava sobre o fogão. Fiquei profundamente aterrorizada por esta cena terrível, mas um sentimento inexplicável me fez compreender que aquela mulher era uma mãe canibal da Rússia faminta.


Aquela cena horripilante foi seguida por outra que representava as minas de carvão. Aqui vi as mesmas cenas que tinha observado um pouco antes no inferno. Velhos e jovens, de maneiras diferentes, mas com uma dor e uma tristeza infinitas em seus olhos, realizavam um trabalho inumano, eram forçados por golpes de chicotes e perseguidos por guardas robustos, cujas feições revelavam uma estúpida bestialidade. E de novo o mesmo sentimento me fez compreender aqueles desgraçados eram os melhores generais e oficiais russos, cuja culpa consistia em ter amado profundamente a sua Pátria, a Rússia.


Também esta cena desapareceu. Satanás estava sempre sentado no trono, enquanto que o pecador calvo, invadido pelo terror, apertava convulsivamente a cabeça entre as mãos, murmurando fracamente palavras sem sentido. “– Você viu o que você fez em sua vida?” O pecador calvo respondeu com voz muito baixa: “– Eu vi!” E Satanás, dirigindo-se de novo aos espíritos malignos, gritou furiosamente: “– Pegai-o e mantei-o junto a mim, enquanto eu julgarei aos que foram seus cúmplices na terra”.


Os demônios pegaram o pecador, lançaram-no por terra junto ao trono, depois se puseram a dançar furiosamente sobre seu corpo. O outro pecador, aquele de tipo polonês, abaixou a cabeça e fechou os olhos: seu rosto estava alterado pela dor, mas já não tinha forças para gritar nem para chorar. Satanás lhe disse: “– Levante a cabeça e olhe. Far-lhe-ei ver só uma cena que lhe fará lembrar todas as suas ações”.


Viu-se então uma rua comprida e ampla, mas tão comprida que parecia não ter fim. Por aquela rua caminhavam lentamente dezenas de milhares de homens, velhos e jovens, mulheres e crianças, homens de todas as condições e de todas as profissões, bispos e sacerdotes, generais e jovens oficiais, soldados e licenciados, operários e camponeses. Alguns tinham o peito perfurado pelas balas, outros a cabeça ferida, outros levavam ainda ao redor do seu pescoço a corda da forca. Todas estas sombras de mártires caminhavam sem pressa pela rua sem fim, em uma direção desconhecida.


Mas de repente ocorreu uma coisa extraordinária: todas aquelas sombras espantosas de assassinados se transformaram em um instante – vi-os vestidos com trajes brancos, leves, etéreos, e em suas mãos vi brilhar velas acesas. Sobre eles descia uma luz nova, azul, estranha. Suas terríveis feridas desapareciam e seus rostos serenos de novo emanavam o sentido de uma felicidade plena, de um bem-estar tão luminoso que parecia que a própria luz emanasse de seus corpos. Toda a rua foi enfeitada com flores de extraordinária beleza. E aquelas dezenas de milhares de assassinados iam, serenos e purificados, com os braços levantados para a luz deslumbrante que brilhava diante deles e chamava-os para si.


Depois desapareceu tudo outra vez e a tétrica festa de Satanás continuou. Ele disse: “– Tudo isto foi você quem causou com suas próprias mãos. Todos estes que você viu foram mortos por você, mas eles, por meio das torturas que você os fez sofrer, expiaram seus pecados e encontraram a beatificação, enquanto que se tivessem continuado vivendo, muitos entre eles teriam vindo parar em meu reino. Por tudo isto, minha vingança sem piedade os alcançará. Eis aqui que já se aproximam para vocês”.


E diante do trono desceu um monstro repugnante, provido de um grande número de tentáculos que se expandiam avidamente em todas as direções. O monstro, aproximando-se do pecador calvo e seu discípulo, pegou os dois com seus tentáculos e arrastou-os. Eles se agitavam, gemiam e lamentavam-se como duas moscas que estivessem presas entre as patas tenazes e impiedosas da aranha.


Todos os pecadores, com a respiração cortada estavam à espera do que lhes ia passar. Compreendiam perfeitamente que nenhum entre eles poderia escapar ao terrível castigo de Satanás e na espera, um terror secreto os paralisava. Nada mais parava o ruído produzido pela fuga do monstro, a bela mulher de cabelo vermelho se aproximou espontaneamente do trono e jogando para trás a cabeça flamejante, olhou para Satanás com seus olhos ardentes. Mas o olhar de Satanás estava cheio de ironia e com um sorriso de maldade lhe disse: “– Conheço sua mão terrena. Eras uma famosa cortesã cuja beleza e inteligência foram admiradas por velhos e jovens sem distinção. Eras riquíssima e para teu palácio vinha a mais alta aristocracia de sua época. Tinhas declarado sempre que não reconhecias outras coisas que as materiais e terrenas. A única ocupação de tua vida foi a libertinagem e experimentavas grande alegria em destruir a vida e a felicidade dos outros. Gostavas de subjugar a um homem e logo ser para ele como uma serpente. E então agora, por estes teus pecados, deverás arrastar-te como uma serpente ante meus demônios que não te abandonarão jamais. Eles te obrigarão a fazer o que eles gostam e nunca poderás rebelar-te.”


“– Tenha piedade de mim”, disse a beldade caindo de joelhos diante do trono e estendendo para Satanás, em um gesto desesperado, seus braços, pela primeira vez impotentes em sua beleza. Mas Satanás continuava rindo e a um sinal seu, uma multidão de demônios agarrou a mulher e, entre saltos e zombarias, arrastaram-na até a saída, deleitando-se com os sofrimentos que lhe causavam.


IV


Durante todo este tempo, o velho grisalho tinha estado à parte. Mas de todos os lugares chegavam os lamentos dos que tinham sido seduzidos por sua incredulidade e por sua falsa doutrina. Seu rosto se escurecia cada vez mais e cada vez se afundavam mais as rugas da testa. Era óbvio que estava pensando em coisas da maior gravidade. Depois sacudiu a cabeça aturdida como para retirar da mente cansada as contínuas meditações, os pensamentos e as lembranças penosas. Mas no inferno não existe o esquecimento do passado e dos próprios pecados.


Parecia que tivesse compreendido isto, com sua aguçada inteligência, porque inclinou a cabeça em uma expressão de desespero completo. Por seus olhos passou uma nuvem de tristeza: compreendia muito bem que devia responder por ele mesmo e também por aqueles que tinham sido extraviados por ele e por todo o povo.


Mas o que atemorizava o velho não era o castigo que lhe esperava. Todo seu horror consistia no fato de que, finalmente, agora lhe parecia claro como se tinha equivocado durante toda sua vida e como sua doutrina não tinha semeado mais que incredulidade e pecado em lugar de felicidade e amor. Nisto consistia seu drama íntimo e seus sofrimentos morais eram indescritíveis. Satanás o olhou com olhar imperativo. O velho levantou a cabeça e, sem a menor subserviência, mas com severidade e valentia, manteve o olhar em Satanás. Depois, com atrevimento, deu alguns passos adiante e pôs-se na frente do trono. Satanás continuava olhando-o em silêncio sem que por isso seu olhar insistente desse medo ao velho, que se atreveu a dirigir a Satanás uma pergunta: “– Assim é que você existe realmente”. E Satanás, com uma risada irônica, respondeu: “– Sim”. E o velho continuou: “– Mas, por que vive deste modo? Por que está sempre em meio a estas frias trevas e passa séculos inteiros em hostilidades vazias contra todo o Universo e envolve na mais profunda dor aos homens que lhe servem? Que necessidade tem de todos estes tormentos e deste diabólico ruído?”


A gente em silêncio conteve a respiração com a ânsia de saber o que ia acontecer. “– Por que não quer recomeçar o caminho reto, voltar a ser bom e terminar em um bom dia com todo o mal que faz?” Com o olhar fixo à distância, Satanás respondeu sombriamente: “– Porque fui amaldiçoado.”


Durante algum instante reinou um profundo silêncio. O velho estava meditando e o próprio Satanás esperava ouvir suas palavras. O velho continuou: “– Agora não somente creio que você existe realmente, mas também que você foi amaldiçoado. Para você estão apagadas todas as estrelas e em seu céu não há sol. Difamou a terra, conduzindo seus habitantes para o pecado. Que você quer fazer no futuro? Continuar destruindo ou bem criar algo novo e mais digno?”


O olhar de Satanás brilhou sinistramente pelo ódio e murmurou com voz que soava a ameaça: “– Enviarei ao mundo o Anticristo e ainda e sempre lutarei contra Aquele que me amaldiçoou!”


“– O Anticristo?”, perguntou assombrado o velho. “– Sim, o Anticristo”, exclamou Satanás. Seu olhar ficou ainda mais triste. Depois de uma pausa, Satanás continuou:


“– Virá o tempo em que em um lugar, que já tenho designado, viverá uma cortesã que terá uma filha ainda mais perversa do que ela. Ela há seu tempo parirá outra cortesã e assim durante onze gerações consecutivas. Na décima segunda geração, nascerá uma mulher que superará em depravação, perversidade e imoralidade todas as outras. Esta será a que porá no mundo aquele que deverá ser a perdição da humanidade inteira. Ele será o Anticristo. Nem se saberá quem é o pai porque será concebido em estado de embriaguez imunda. Desde seu nascimento, eu viverei nele e ele em mim. A mãe notará muitos sinais incompreensíveis no momento do nascimento, mas eu a induzirei ao silêncio”.


Será um homem de uma inteligência extraordinária, que superará em muito a inteligência de seus contemporâneos. Terá também uma vastíssima cultura. Quando alcançar a idade adulta, sentirá dentro de si uma desenfreada avidez de comando e encontrará o apoio de um povo que será seu predileto. Por-lhe-ei nas mãos, riquezas imensas, e por meio delas será grande e poderoso. E quando se desencadear uma grande guerra, na qual participará todo o mundo, o Anticristo participará nela em qualidade de simples oficial. Devido a suas capacidades, a sua bravura e coragem, ele fará em pouco tempo uma brilhantíssima carreira e ocupará os mais altos postos da hierarquia. Não conhecerá os fracassos e, conseguindo uma vitória atrás da outra, ganhará uma popularidade sem limites e infundirá em todos a simpatia e a confiança em sua pessoa.


Nenhum projétil poderá alcançá-lo nunca e as armas de todos os tipos lhe farão apenas sorrir. Em qualquer posto em que se encontre, será sinal seguro de que este posto não poderá ser tomado. Os barcos e os aviões que se encontrem ao seu comando terão a vitória segura.


Eu farei de maneira que a água, o fogo e os outros elementos da natureza lhe estejam submetidos. Vencerá e destruirá os poderes de todos os outros povos, de modo que ainda aumentará mais a admiração por ele entre as populações. Destronará reis, expulsará ditadores e presidentes e subjugará, por último, a todos os povos que se inclinarão diante de seu poderio e o reconhecerão por líder supremo. Reinará sobre todo o mundo e será o verdadeiro dono e senhor de toda a terra (São João 5, 43: “Eu vim em nome de Meu Pai e vocês não me receberam, se outro vier em seu próprio nome, a esse o receberão.”) E eu lhe darei o poder de operar milagres, de forma que o mundo acreditará que ele é o próprio Cristo (II Tessalonicenses 2, 9-10: “A vinda do ímpio vai acontecer graças ao poder de Satanás, com todo tipo de falsos milagres, sinais e prodígios, e com toda a sedução que a injustiça exerce sobre os que se perdem, por não se terem aberto ao amor da verdade, amor que os teria salvo.”) (4). Ainda sem compreender seus atos, não se atreverão a criticá-lo e assim, por meio dele, eu corromperei a todo o gênero humano, empurrando-o à busca de novos conceitos no campo da filosofia e colocando-os em contradição com a religião.


(4) Naturalmente que os textos bíblicos citados, o são pela autora e não por Lúcifer.


Destruiremos também todas as leis da moralidade e, através do escárnio, cultivaremos na terra o sacrilégio e a blasfêmia, faremos que ocorra toda classe de acontecimentos desagradáveis ao extremo. Em todas as partes criaremos um número incrível de obstáculos e envolveremos a todos os homens e a todas as mulheres na sede das mais refinadas depravações. Recolheremos deliciosos frutos nos campos do mal. Durante o reinado do Anticristo enviado por mim, meus servos fiéis assumirão formas tais que não deixarão supor que sejam demônios. Levarão a tentação às mentes e os homens perderão sua personalidade e sua capacidade de governar os próprios instintos. E deste modo o mal reinará.


Teremos que realizar muito esforço nesse período, porque cada invocação e cada oração dirigidas a Jesus Cristo serão suficientes para converter uma alma. Mas nós continuaremos sem trégua em nosso terrível avanço: criaremos uma vida absurda e brutal, destruiremos tudo e teremos constrangido a todos os povos entre nossas mãos. Destruiremos e devastaremos os templos, apagaremos todas as lâmpadas acesas em honra ao Altíssimo. Ó, como eu odeio aos que rezam nos templos! Odeio as Missas, as predicações e os cantos litúrgicos. Em meu reinado do Anticristo só haverá maldade e sofrimentos em tal quantidade, que desde que o mundo é mundo não se terá visto tanta. Então, em um excesso de dor e de louco desespero, os homens começarão, gemendo, a murmurar e culpar a Deus. Esta será a culminação de todos os meus desejos. Este será meu reinado, reino do mal e do ódio eternos”, assim gritava Satanás, flamejando com seus terríveis olhos.


O velho franziu a testa e seus olhos brilharam com uma estranha luz. “Nunca, nunca, você compreendeu?”, disse a Satanás em um impulso de impetuosa violência. “Nunca as trevas triunfarão sobre a luz. O mal não vencerá o bem. Estive errado durante toda a minha vida, mas agora creio com toda a alma e estou seguro que Jesus Cristo vencerá e lhe esmagará, a você que é o filho das eternas trevas”.(5)


(5) Estas palavras não são de arrependimento, mas simples constatação. No inferno não existe mais o arrependimento e milhões há que somente quando caíram lá é que entendem a verdade.


Ao ouvir estas palavras, Satanás, levantando-se, gritou furiosamente: “Por seu atrevimento, por sua incredulidade sobre o que lhe digo e pelas palavras insolentes que pronuncias aqui em meu reino, poderia fazer-lhe sofrer tais torturas como jamais se viram aqui no inferno. Mas deves saber que minhas leis, as leis do mal, são tão exatas como as leis do bem de Deus. Tudo o que eu disse acontecerá exatamente como eu lhe descrevi”.


Depois, indicando-lhe a sala com um amplo gesto da mão: “Olhe quantos pecadores estão aqui reunidos. Após a chegada do Anticristo, o seu número aumentará milhares de vezes. E eu já tenho desde agora inventadas uma quantidade incomensurável de novas torturas, de modo que cada pecador tenha a pena apropriada”.


Naquele instante junto ao velho apareceu uma figura negra, desordenada. Satanás se sentou. “– Não lhe farei sofrer nenhuma tortura física – continuou entre o mais completo silêncio da massa – porque compreendo perfeitamente que elas não seriam apropriadas para você, que não as mereceria. Eu não lhe deixarei em meu reino, mas lhe mandarei sobre a terra, colocando-o junto a um companheiro que lhe seguirá nas reuniões de seus sequazes. Você assistirá às suas reuniões e ouvirá seus discursos sacrílegos, escutará seus erros que você mesmo lhes inspirou e dos quais só agora você se arrependeu. Escutando seus erros, você tentará em vão dirigir-lhes pelo caminho reto fazendo-os esquecer sua falsa doutrina, mas sua voz não será ouvida e estará invisível e inatingível para eles. E seu castigo será tanto maior quanto que os seus esforços não darão nenhum resultado”.


Assim será durante um larguíssimo tempo. Depois lhe enviarei sobre um planeta, todo coberto de um mar eternamente tempestivo. No meio deste mar só há uma rocha alta sobre a qual passarão meus fiéis súditos transportando ao meu reino a todos os seus sequazes. Você estará sempre ali e verá continuamente como se enche meu reino graças a suas doutrinas. Vai!” e estendeu a mão com gesto imperativo.


O velho se virou silenciosamente e, sempre acompanhado da sombra negra, dirigiu-se até a saída sem pressa e dignamente, seguido do olhar atônito de todos aqueles que se encontravam no salão infernal. Apenas tinha desaparecido o velho, quando um pequeno e esperto demônio se aproximou saltando ao trono de Satanás. Colocou-se na mesma ponta e sussurrou ao ouvido de Satanás algo. E Satanás disse: “– Está bem”.


Como uma bola, o demônio rodou pela areia e dirigiu-se até o grupo de pecadores que se encontrava diante do trono. Com um gesto chamou os outros demônios e todos juntos se puseram a empurrar a multidão dos pecadores, gritando desmedidamente. Em poucos momentos, uma grande parte da arena estava completamente livre e então se ouviu por todas as partes um terrível ranger. Inumeráveis chamas brotaram do chão e saltaram ao alto, torcendo-se e entrelaçando-se. Milhares de estrelas coloridas e de globos ardentes voavam pelo ar. Tudo foi iluminado por uma luz tão forte que causava dano aos olhos. Todos os pecadores juntos entoaram um canto e entre uma estridência de assobios ensurdecedores, apareceu um corpo de baile composto de milhares de dançarinas. Todas estavam identicamente vestidas: uma túnica curtíssima feita de correias, enquanto as costas e os ombros nus estavam adornados de grinaldas de espinhos que lhes causavam dores insuportáveis, ferindo suas imagens incorpóreas a cada movimento. Cheias de tristeza, rodearam o trono de Satanás em um círculo multicolor, executando uma antiga e meticulosamente estudada e solene dança. Mas ainda querendo, era impossível compreender o significado destas complicadas figuras.


Na terra, elas haviam sido dançarinas que tinham perseguido somente os prazeres terrenos, esquecendo completamente a vida do espírito, esquecendo também que , depois da vida terrena, existe outra vida, a eterna, durante a qual se prestará conta de todos os pecados cometidos.


Depois apareceu uma centena de bailarinas de categoria superior. Eram as melhores bailarinas que o mundo havia tido e se encontravam ali por haver-se entregue demais ao pecado. Havia de todas as nações. Tinham o olhar triste e nos olhos e nas dobras da boca se escondia uma profunda amargura que dizia melhor que toda palavra o penoso que eram suas vidas. Não tinham, entretanto, esquecido sua arte e flutuavam, leves e graciosas, etéreas aparições tocando a arena apenas com a ponta dos pés, com o acompanhamento da música infernal. Algumas pareciam que se lembravam de seus êxitos passados e mantinham a cabeça erguida, enquanto outras, ao contrário, choravam resignadamente pensando nos belos dias felizes terminados para sempre. De vez em quando se detinham e tomavam formas, atitudes pitorescas e apáticas ante o trono do soberano das trevas, que as olhava sorrindo com um sorriso maligno, mas sem que seu rosto expressasse verdadeira alegria.


Riam junto com ele todos os demônios que se encontravam na sala, mas os pecadores, pelo contrário, estavam esgotados por todo o que tinham visto. Algumas bailarinas, sem forças por aquela dança ininterrupta, caíam exaustas no meio da arena, mas em seguida se lançavam em cima delas os demônios ferozes, golpeando-as nos rostos sempre em vão. Nenhuma oração, nenhum grito podia comover a Satanás, que não parava de rir. E seus servos, com novos ímpetos arrastavam as bailarinas, que soluçavam. De novo se formou ante o trono um espaço livre. Satanás, sempre tenebroso, disse em voz alta: “– Não há qualquer divertimento, sinto-me triste”. Como um furacão soou a terrível voz e ninguém pôde suportar seu olhar sinistro. Agitando suas enormes asas, levantou-se em toda sua estatura e em sua testa apareceram rugas. Ao redor dele zumbiam uma espécie de moscas para diverti-lo.


Então os espíritos do mal as empurraram à parte para deixar lugar a um coro que se aproximava. Mas ainda que o coro executasse cantos belíssimos, Satanás, submerso em quem sabe que tristes pensamentos, não prestou qualquer atenção ao mesmo, cujos cantos se extinguiam antes de chegar aos seus ouvidos.


Ele olhava um ponto indefinido do espaço. Os coristas, depois de ter emitido as últimas notas da canção, levantaram seus olhos em súplica para o tremendo Satanás, mas não receberam dele nenhum elogio, pelo contrário, flechas de fogo, aparecidas de improviso, fincaram-se em seus peitos. Entraram depois saltando bailarinas, malabaristas, palhaços e acrobatas, que executavam todo tipo de exercícios cômicos e prodigiosos. E minha atenção foi atraída especialmente por um palhacinho de cabelo vermelho, eriçado e todo emaranhado. Realizou toda classe de exercícios tentando fazer rir com trejeitos extraordinários e até então nunca vistos. Sua boca tentava esboçar um sorriso e todo seu ser tentava aparentar um aspecto alegre. Mas era evidente sua trágica situação e foi-me possível notar em seguida a dor íntima que o consumia. Me causou uma dó imensa. Mas também ele seguiu a sorte dos outros e foi conduzido para fora por um demônio cinzento.


Mas não havia alegria. O terror reinava pr todas as partes: milhões de seres cantavam e dançavam, mas em seus cantos se ouviam gemidos. Todo este espetáculo era tão estranho, terrível e feroz e mudava tão continuamente, que era difícil dar-se conta de todos os graus de terror que suscitava.


Depois vi voar seres estranhos, transparentes como se fossem tecidos com teia de aranha. Dos olhos emanava uma estranha luz verde. Flutuavam daqui para lá, buscando alguma alma para torturar e com seus mordiscos venenosos proporcionavam aos pecadores uma dor insuportável. Na sala, no entanto, os gritos dos pecadores continuavam ressoando, gritos de espanto, e seus rostos estavam transformados, mas para ele não pareciam suficientes estes sofrimentos e desejava desfrutar ainda mais.


Fez um gesto imperativo e seus olhos lançaram chamas. Todos os demônios que ocupavam a sala compreenderam em seguida o gesto e o olhar. Com prontidão se lançaram sobre os pecadores, segurando homens e mulheres e fazendo-os dar voltas em uma dança louca. Tudo ardia com uma luz deslumbrante. Os globos de fogo se haviam separado de seus apoios e, descendo, misturavam-se à multidão em redemoinho. Como ferro ardente, queimavam os corpos dos pecadores. Faíscas de muitas cores caíam por todas as partes, enquanto que chamas altíssimas, saídas das entranhas da terra, envolviam como serpentes sinuosas aos pecadores como se fossem fitas de fogo.


Eu estava literalmente ensurdecida por este caos de ruídos e gritos, e tudo começou a confundir-se e a girar ante meus olhos. De repente, através de alguma fenda invisível, começou a penetrar na sala uma fumaça sulfurosa, esverdeada, sufocante, que pouco a pouco encheu o salão, envolvendo tudo como na neblina. As luzes se escureceram e todo ruído parou: só se ouviu, naquela misteriosa escuridão, um estalido que fazia estremecer. Era Satanás que lentamente abria suas gigantescas asas negras. De golpe, com um assobio estridente, abriu-as totalmente e, como um pássaro fantasmagórico, levantou-se sobre os pecadores e os demônios que havia na sala. Entre a neblina verde pareceu-me descobrir as sombras dos demônios que continuavam perseguindo a suas vítimas, enquanto Satanás, voando soberbamente sobre tudo, triunfava rindo e emitindo palavras e frases cujo significado só ele compreendia.


Depois, pouco a pouco, a densa neblina clareou e pude ver nitidamente o que acontecia. Os pecadores, exaustos pelas incalculáveis torturas, já não puderam suportar mais, haviam-se rebelado contra os demônios e tinham começado a lutar com eles, que fora de si ocupavam-se em acabar com o tumulto entre horríveis palavrões. Venceram ao final os terríveis e impiedosos demônios e ouvi ressoar nas profundezas da enorme caverna seu relincho, com o qual expressavam seu menosprezo pelos pecadores. Deste modo Satanás celebrava sua festa anual. Mas minha mente se ofuscou e senti um zumbido incômodo na cabeça. Depois passou por meu lado um redemoinho e fui arrastada para fora por uma força desconhecida.


     Arnaldo escreve: Termina aqui este relato horripilante. Serve para que todos nós nos compenetremos da terrível realidade do inferno, destino eterno daqueles que se rebelam contra Deus, dos que fazem pouco caso da Justiça Divina, dos que não crêem que o demônio existe, e especialmente de todos aqueles que não fazem uso da divina misericórdia, rejeitando assim a graça e a salvação eterna de suas almas. Ele é o destino eterno dos orgulhosos, dos mentirosos, dos invejosos e de todos aqueles que amam ao pecado e ao mal. Não se trata de castigo demasiado forte e sim de rebeldia além do limite extremo. O inferno quem deseja é o homem mau! E ele o terá!


Arnaldo


Tradução livre de Maria, este o nome de uma professora universitária. Lembremos de nossa Mãe Maria Santíssima, o terror do inferno e apeguemo-nos nela.




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