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08/04/2016
Amoris laetitia
Gradualidade, fragilidade, pastoral misericordiosa, situações "irregulares"


Para aqueles que desejam ter uma ideia do documento Amoris Laetitia, apresento um capítulo, do qual eu cortei a maioria das indicações e corrigi a diferença entre a linguagem de Portugal e do Brasil. Mas quem quiser poderá ir no site www.vatican.va que lá está na integra o documento.

Coloco para apreciação apenas o capítulo VIII, que trata mais das situações irregulares, como é o caso dos casais em segunda união, portanto em adultério. Em tudo se nota uma forma capciosa de dar face de beleza ou de bem a algo que é intrinsicamente mau ou desordenado. A frase que cabe sempre é esta: não existe adultério santo, nem mais ou menos santo. Ele sempre é pecado. Não importa se o casal continue na Igreja mesmo não comungando ou que viva completamente fora da comunidade eclesial. O pecado está no relacionamento íntimo, fora do Santo Sacramento do Matrimônio. Neste caso chamo a atenção para o item 298, que tenta furar a Doutrina da Igreja.

Assim, nenhum sacerdote, em qualquer lugar do mundo, tem poder de mudar aquilo que Deus estabeleceu para sempre. Mesmo que ele conheça o casal, que sejam seus amigos, que participem naquilo que podem na vida da Igreja – vão à Missa sem comungar, rezam em família – ainda assim, caso o casal mantenha relacionamento íntimo, ele não difere de outro casal que não seja assíduo na Igreja, porque uma coisa é o pecado do adultério, outra bem diferente é o relaxamento nas coisas da Igreja. Então o pecado que veda o casal ao acesso do Sacramento é aquele contra os sexto mandamento, não fato de viver afastado da Igreja. Até porque, a vida em adultério impossibilita o casal de receber o Sacramento da Reconciliação, enquanto o outro se fosse apenas ele, este permite.

Neste caso, não existe a questão da “gradualidade” – o fato de o adultério ser o pecado mais ou menos grave levando-se sem conta o que aconteceu na ruptura dos casamentos anteriores – nem mesmo de “pastoralidade”, ou seja, de dar ao sacerdote o direito de discernir entre este grave ou leve, e permitir segundo a sua consciência e a consciência do casal, que eles possam ou não participar da Confissão e da Eucaristia. Porque para participar da Comunhão é preciso estar com a alma limpa pela Confissão, que teria que ser feita antes. Ora, isso significaria perdoar o pecado do adultério, no caso de pessoas que vivem em “pecado continuado”, portanto, não existe o arrependimento nem a contrição, condições estas que invalidam e tornam sacrílegas as confissões e as Comunhões.

E tem aquela velha lamúria do Francis, de nos taxar de “corações duros”, que não aceitam mudanças, que se apegam na letra velha da Lei e não abrem espaço para as “surpresas do Espírito Santo”. Ora, quem se apega na Lei e na Verdade jamais pode ser considerado rígido porque isso é ser fiel, e ademais o verdadeiro Espírito Santo jamais trás novidades numa Doutrina que é Eterna. E para finalizar este comentário podemos afirmar que, todo aquele casal, que vive – como eu vivi por 16 anos – em estado de adultério, mesmo que participe da Igreja e seja considerado um bom católico, caso ele exija participar da Eucaristia neste estado, deixa de ser bom, e passa a ser mau. E aí mesmo é que ele não pode participar da Sagrada Comunhão.

CAPÍTULO VIII ACOMPANHAR, DISCERNIR E INTEGRAR A FRAGILIDADE

 291. Os Padres sinodais afirmaram que, embora a Igreja reconheça que toda a ruptura do vínculo matrimonial «é contra a vontade de Deus, está consciente também da fragilidade de muitos dos seus filhos». Iluminada pelo olhar de Cristo, a Igreja «dirige-se com amor àqueles que participam na sua vida de modo incompleto, reconhecendo que a graça de Deus também atua nas suas vidas, dando-lhes a coragem para fazer o bem, cuidar com amor um do outro e estar ao serviço da comunidade onde vivem e trabalham». Aliás esta atitude vê-se corroborada no contexto de um Ano Jubilar dedicado à misericórdia. Embora não cesse jamais de propor a perfeição e convidar a uma resposta mais plena a Deus, « a Igreja deve acompanhar, com atenção e solicitude, os seus filhos mais frágeis, marcados pelo amor ferido e extraviado, dando-lhes de novo confiança e esperança, como a luz do farol dum porto ou duma tocha acesa no meio do povo para iluminar aqueles que perderam a rota ou estão no meio da tempestade ». Não esqueçamos que, muitas vezes, o trabalho da Igreja é semelhante ao de um hospital de campanha.

 292. O matrimónio cristão, reflexo da união entre Cristo e a sua Igreja, realiza-se plenamente na união entre um homem e uma mulher, que se doam reciprocamente com um amor exclusivo e livre fidelidade, se pertencem até à morte e abrem à transmissão da vida, consagrados pelo sacramento que lhes confere a graça para se constituírem como igreja doméstica e serem fermento de vida nova para a sociedade. Algumas formas de união contradizem radicalmente este ideal, enquanto outras o realizam pelo menos de forma parcial e analógica. Os Padres sinodais afirmaram que a Igreja não deixa de valorizar os elementos construtivos nas situações que ainda não correspondem ou já não correspondem à sua doutrina sobre o matrimónio.

 A gradualidade na pastoral

293. Os Padres consideraram também a situação particular de um matrimónio apenas civil ou mesmo, ressalvadas as distâncias, da mera convivência: « quando a união atinge uma notável estabilidade através dum vínculo público e se caracteriza por um afeto profundo, responsabilidade para com a prole, capacidade de superar as provas, pode ser vista como uma ocasião a acompanhar na sua evolução para o sacramento do matrimónio». Além disso, é preocupante que hoje muitos jovens não tenham confiança no matrimónio e convivam adiando indefinidamente o compromisso conjugal, enquanto outros põem termo ao compromisso assumido e imediatamente instauram um novo. Aqueles « que fazem parte da Igreja, precisam duma atenção pastoral misericordiosa e encorajadora ». Com efeito, aos pastores compete não só a promoção do matrimónio cristão, mas também «o discernimento pastoral das situações de muitas pessoas que deixaram de viver esta realidade », para « entrar em diálogo pastoral com elas a fim de evidenciar os elementos da sua vida que possam levar a uma maior abertura ao Evangelho do matrimónio na sua plenitude ».No discernimento pastoral, convém «identificar elementos que possam favorecer a evangelização e o crescimento humano e espiritual».

294. «Muitas vezes a escolha do matrimónio civil ou, em diversos casos, da simples convivência não é motivada por preconceitos ou relutância face à união sacramental, mas por situações culturais ou contingentes»Nestas situações, poderão ser valorizados aqueles sinais de amor que refletem de algum modo o amor de Deus. Sabemos que « está em contínuo crescimento o número daqueles que, depois de terem vivido juntos longo tempo, pedem a celebração do matrimónio na Igreja. Muitas vezes, escolhe-se a simples convivência por causa da mentalidade geral contrária às instituições e aos compromissos definitivos, mas também porque se espera adquirir maior segurança existencial (emprego e salário fixo). Noutros países, por último, as uniões de facto são muito numerosas, não só pela rejeição dos valores da família e do matrimónio, mas sobretudo pelo facto de a cerimónia do casamento ser sentida como um luxo, pelas condições sociais, de modo que a miséria material impele a viver uniões de facto». Mas « é preciso enfrentar todas estas situações de forma construtiva, procurando transformá-las em oportunidades de caminho para a plenitude do matrimónio e da família à luz do Evangelho. Trata-se de acolhê-las e acompanhá-las com paciência e delicadeza ».Foi o que Jesus fez com a Samaritana (cf. Jo 4, 1-26): dirigiu uma palavra ao seu desejo de amor verdadeiro, para a libertar de tudo o que obscurecia a sua vida e guiá-la para a alegria plena do Evangelho.

295. Nesta linha, São João Paulo II propunha a chamada «lei da gradualidade », ciente de que o ser humano « conhece, ama e cumpre o bem moral segundo diversas etapas de crescimento». Não é uma « gradualidade da lei», mas uma gradualidade no exercício prudencial dos atos livres em sujeitos que não estão em condições de compreender, apreciar ou praticar plenamente as exigências objetivas da lei. Com efeito, também a lei é dom de Deus, que indica o caminho; um dom para todos sem excepção, que se pode viver com a força da graça, embora cada ser humano « avance gradualmente com a progressiva integração dos dons de Deus e das exigências do seu amor definitivo e absoluto em toda a vida pessoal e social».

O discernimento das situações chamadas «irregulares »

296. O Sínodo referiu-se a diferentes situações de fragilidade ou imperfeição. A este respeito, quero lembrar aqui uma coisa que pretendi propor, com clareza, a toda a Igreja para não nos equivocarmos no caminho: «Duas lógicas percorrem toda a história da Igreja: marginalizar e reintegrar. (...) O caminho da Igreja, desde o Concílio de Jerusalém em diante, é sempre o de Jesus: o caminho da misericórdia e da integração. (...) O caminho da Igreja é o de não condenar eternamente ninguém; derramar a misericórdia de Deus sobre todas as pessoas que a pedem com coração sincero (...). Porque a caridade verdadeira é sempre imerecida, incondicional e gratuita ». Por isso, «temos de evitar juízos que não tenham em conta a complexidade das diversas situações e é necessário estar atentos ao modo em que as pessoas vivem e sofrem por causa da sua condição».

297. Trata-se de integrar a todos, deve-se ajudar cada um a encontrar a sua própria maneira de participar na comunidade eclesial, para que se sinta objeto duma misericórdia «imerecida, incondicional e gratuita ». Ninguém pode ser condenado para sempre, porque esta não é a lógica do Evangelho! Não me refiro só aos divorciados que vivem numa nova união, mas a todos seja qual for a situação em que se encontrem. Obviamente, se alguém ostenta um pecado objetivo como se fizesse parte do ideal cristão ou quer impor algo diferente do que a Igreja ensina, não pode pretender dar catequese ou pregar e, neste sentido, há algo que o separa da comunidade (cf. Mt 18, 17). Precisa de voltar a ouvir o anúncio do Evangelho e o convite à conversão. Mas, mesmo para esta pessoa, pode haver alguma maneira de participar na vida da comunidade, quer em tarefas sociais, quer em reuniões de oração, quer na forma que lhe possa sugerir a sua própria iniciativa discernida juntamente com o pastor. Quanto ao modo de tratar as várias situações chamadas «irregulares», os Padres sinodais chegaram a um consenso geral que eu sustento: «Na abordagem pastoral das pessoas que contraíram matrimónio civil, que são divorciadas novamente casadas, ou que simplesmente convivem, compete à Igreja revelar-lhes a pedagogia divina da graça nas suas vidas e ajudá-las a alcançar a plenitude do desígnio que Deus tem para elas», sempre possível com a força do Espírito Santo.

298. Os divorciados que vivem numa nova união, por exemplo, podem encontrar-se em situações muito diferentes, que não devem ser catalogadas ou encerradas em afirmações demasiado rígidas, sem deixar espaço para um adequado discernimento pessoal e pastoral. Uma coisa é uma segunda união consolidada no tempo, com novos filhos, com fidelidade comprovada, dedicação generosa, compromisso cristão, consciência da irregularidade da sua situação e grande dificuldade para voltar atrás sem sentir, em consciência, que se cairia em novas culpas. A Igreja reconhece a existência de situações em que «o homem e a mulher, por motivos sérios – como, por exemplo, a educação dos filhos – não se podem separar». Há também o caso daqueles que fizeram grandes esforços para salvar o primeiro matrimónio e sofreram um abandono injusto, ou o caso daqueles que « contraíram uma segunda união em vista da educação dos filhos, e, às vezes, estão subjectivamente certos em consciência de que o precedente matrimónio, irremediavelmente destruído, nunca tinha sido válido». Coisa diferente, porém, é uma nova união que vem dum divórcio recente, com todas as consequências de sofrimento e confusão que afetam os filhos e famílias inteiras, ou a situação de alguém que faltou repetidamente aos seus compromissos familiares. Deve ficar claro que este não é o ideal que o Evangelho propõe para o matrimónio e a família. Os Padres sinodais afirmaram que o discernimento dos pastores sempre se deve fazer « distinguindo adequadamente », com um olhar que discirna bem as situações. Sabemos que não existem «receitas simples».

 299. Acolho as considerações de muitos Padres sinodais que quiseram afirmar que «os batizados que se divorciaram e voltaram a casar civilmente devem ser mais integrados na comunidade cristã sob as diferentes formas possíveis, evitando toda a ocasião de escândalo. A lógica da integração é a chave do seu acompanhamento pastoral, para saberem que não só pertencem ao Corpo de Cristo que é a Igreja, mas podem também ter disso mesmo uma experiência feliz e fecunda. São batizados, são irmãos e irmãs, o Espírito Santo derrama neles dons e carismas para o bem de todos. A sua participação pode exprimir-se em diferentes serviços eclesiais, sendo necessário, por isso, discernir quais das diferentes formas de exclusão atualmente praticadas em âmbito litúrgico, pastoral, educativo e institucional possam ser superadas. Não só não devem sentir-se excomungados, mas podem viver e maturar como membros vivos da Igreja, sentindo-a como uma mãe que sempre os acolhe, cuida afetuosamente deles e encoraja-os no caminho da vida e do Evangelho. Esta integração é necessária também para o cuidado e a educação cristã dos seus filhos, que devem ser considerados o elemento mais importante ».334

300. Se se tiver em conta a variedade inumerável de situações concretas, como as que mencionamos antes, é compreensível que se não devia esperar do Sínodo ou desta Exortação uma nova normativa geral de tipo canónico, aplicável a todos os casos. É possível apenas um novo encorajamento a um responsável discernimento pessoal e pastoral dos casos particulares, que deveria reconhecer: uma vez que «o grau de responsabilidade não é igual em todos os casos», as consequências ou efeitos duma norma não devem necessariamente ser sempre os mesmos. Os sacerdotes têm o dever de «acompanhar as pessoas interessadas pelo caminho do discernimento segundo a doutrina da Igreja e as orientações do bispo. Neste processo, será útil fazer um exame de consciência, através de momentos de reflexão e arrependimento. Os divorciados novamente casados deveriam questionar-se como se comportaram com os seus filhos, quando a união conjugal entrou em crise; se houve tentativas de reconciliação; como é a situação do cônjuge abandonado; que consequências têm a nova rela- ção sobre o resto da família e a comunidade dos fiéis; que exemplo oferece ela aos jovens que se devem preparar para o matrimónio. Uma reflexão sincera pode reforçar a confiança na misericórdia de Deus que não é negada a ninguém». Trata-se dum itinerário de acompanhamento e discernimento que «orienta estes fiéis na tomada de consciência da sua situação diante de Deus. O diálogo com o sacerdote, no foro interno, concorre para a formação dum juízo correto sobre aquilo que dificulta a possibilidade duma participação mais plena na vida da Igreja e sobre os passos que a podem favorecer e fazer crescer. Uma vez que na própria lei não há gradualidade (cf. Familiaris consortio, 34), este discernimento não poderá jamais prescindir das exigências evangélicas de verdade e caridade propostas pela Igreja. Para que isto aconteça, devem garantir-se as necessárias condições de humildade, privacidade, amor à Igreja e à sua doutrina, na busca sincera da vontade de Deus e no desejo de chegar a uma resposta mais perfeita à mesma ». Estas atitudes são fundamentais para evitar o grave risco de mensagens equivocadas, como a ideia de que algum sacerdote pode conceder rapidamente « excepções», ou de que há pessoas que podem obter privilégios sacramentais em troca de favores. Quando uma pessoa responsável e discreta, que não pretende colocar os seus desejos acima do bem comum da Igreja, se encontra com um pastor que sabe reconhecer a seriedade da questão que tem entre mãos, evita-se o risco de que certo discernimento leve a pensar que a Igreja sustente uma moral dupla. As circunstâncias atenuantes no discernimento pastoral

301. Para se entender adequadamente por que é possível e necessário um discernimento especial nalgumas situações chamadas «irregulares», há uma questão que sempre se deve ter em conta, para nunca se pensar que se pretende diminuir as exigências do Evangelho. A Igreja possui uma sólida reflexão sobre os condicionamentos e as circunstâncias atenuantes. Por isso, já não é possível dizer que todos os que estão numa situação chamada «irregular» vivem em estado de pecado mortal, privados da graça santificante. Os limites não dependem simplesmente dum eventual desconhecimento da norma. Uma pessoa, mesmo conhecendo bem a norma, pode ter grande dificuldade em compreender «os valores inerentes à norma » ou pode encontrar-se em condições concretas que não lhe permitem agir de maneira diferente e tomar outras decisões sem uma nova culpa. Como bem se expressaram os Padres sinodais, «pode haver fatores que limitam a capacidade de decisão». E São Tomás de Aquino reconhecia que alguém pode ter a graça e a caridade, mas é incapaz de exercitar bem alguma das virtudes, pelo que, embora possua todas as virtudes morais infusas, não manifesta com clareza a existência de alguma delas, porque a prática exterior dessa virtude está dificultada: «Diz-se que alguns Santos não têm certas virtudes, enquanto experimentam dificuldade em pô-las em ato, embora tenham os hábitos de todas as virtudes».

 302. A propósito destes condicionamentos, o Catecismo da Igreja Católica exprime-se de maneira categórica: «A imputabilidade e responsabilidade dum ato podem ser diminuídas, e até anuladas, pela ignorância, a inadvertência, a violência, o medo, os hábitos, as afeições desordenadas e outros fatores psíquicos ou sociais». E, noutro parágrafo, refere-se novamente às circunstâncias que atenuam a responsabilidade moral, nomeadamente « a imaturidade afetiva, a força de hábitos contraídos, o estado de angústia e outros fatores psíquicos ou sociais». Por esta razão, um juízo negativo sobre uma situação objetiva não implica um juízo sobre a imputabilidade ou a culpabilidade da pessoa envolvida. No contexto destas convicções, considero muito apropriado aquilo que muitos Padres sinodais quiseram sustentar: «Em determinadas circunstâncias, as pessoas encontram grandes dificuldades para agir de maneira diferente. (...) O discernimento pastoral, embora tendo em conta a consciência retamente formada das pessoas, deve ocupar- -se destas situações. As próprias consequências dos actos praticados não são necessariamente as mesmas em todos os casos».

303. A partir do reconhecimento do peso dos condicionamentos concretos, podemos acrescentar que a consciência das pessoas deve ser melhor incorporada na práxis da Igreja em algumas situações que não realizam objetivamente a nossa conceção do matrimónio. É claro que devemos incentivar o amadurecimento duma consciência esclarecida, formada e acompanhada pelo discernimento responsável e sério do pastor, e propor uma confiança cada vez maior na graça. Mas esta consciência pode reconhecer não só que uma situação não corresponde objetivamente à proposta geral do Evangelho, mas reconhecer também, com sinceridade e honestidade, aquilo que, por agora, é a resposta generosa que se pode oferecer a Deus e descobrir com certa segurança moral que esta é a doação que o próprio Deus está a pedir no meio da complexidade concreta dos limites, embora não seja ainda plenamente o ideal objetivo. Em todo o caso, lembremo-nos que este discernimento é dinâmico e deve permanecer sempre aberto para novas etapas de crescimento e novas decisões que permitam realizar o ideal de forma mais completa.

As normas e o discernimento

304. É mesquinho deter-se a considerar apenas se o agir duma pessoa corresponde ou não a uma lei ou norma geral, porque isto não basta para discernir e assegurar uma plena fidelidade a Deus na existência concreta dum ser humano. Peço encarecidamente que nos lembremos sempre de algo que ensina São Tomás de Aquino e aprendamos a assimilá-lo no discernimento pastoral: «Embora nos princípios gerais tenhamos o carácter necessário, todavia à medida que se abordam os casos particulares, aumenta a indeterminação (…). No âmbito da ação, a verdade ou a retidão prática não são iguais em todas as aplicações particulares, mas apenas nos princípios gerais; e, naqueles onde a retidão é idêntica nas próprias ações, esta não é igualmente conhecida por todos. (...) Quanto mais se desce ao particular, tanto mais aumenta a indeterminação».

É verdade que as normas gerais apresentam um bem que nunca se deve ignorar nem transcurar, mas, na sua formulação, não podem abarcar absolutamente todas as situações particulares. Ao mesmo tempo é preciso afirmar que, precisamente por esta razão, aquilo que faz parte dum discernimento prático duma situação particular não pode ser elevado à categoria de norma. Isto não só geraria uma casuística insuportável, mas também colocaria em risco os valores que se devem preservar com particular cuidado.

 305. Por isso, um pastor não pode sentir-se satisfeito apenas aplicando leis morais àqueles que vivem em situações «irregulares», como se fossem pedras que se atiram contra a vida das pessoas. É o caso dos corações fechados, que muitas vezes se escondem até por detrás dos ensinamentos da Igreja «para se sentar na cátedra de Moisés e julgar, às vezes com superioridade e superficialidade, os casos difíceis e as famílias feridas». Na mesma linha se pronunciou a Comissão Teológica Internacional: «A lei natural não pode ser apresentada como um conjunto já constituído de regras que se impõem a priori ao sujeito moral, mas é uma fonte de inspiração objetiva para o seu processo, eminentemente pessoal, de tomada de decisão». Por causa dos condicionalismos ou dos fatores atenuantes, é possível que uma pessoa, no meio duma situação objetiva de pecado – mas subjetivamente não seja culpável ou não o seja plenamente –, possa viver em graça de Deus, possa amar e possa também crescer na vida de graça e de caridade, recebendo para isso a ajuda da Igreja. O discernimento deve ajudar a encontrar os caminhos possíveis de resposta a Deus e de crescimento no meio dos limites. Por pensar que tudo seja branco ou preto, às vezes fechamos o caminho da graça e do crescimento e desencorajamos percursos de santificação que dão glória a Deus. Lembremo-nos de que «um pequeno passo, no meio de grandes limitações humanas, pode ser mais agradável a Deus do que a vida externamente correta de quem transcorre os seus dias sem enfrentar sérias dificuldades». A pastoral concreta dos ministros e das comunidades não pode deixar de incorporar esta realidade.

306. Em toda e qualquer circunstância, perante quem tenha dificuldade em viver plenamente a lei de Deus, deve ressoar o convite a percorrer a via caritatis. A caridade fraterna é a primeira lei dos cristãos (cf. Jo 15, 12; Gal 5, 14). Não esqueçamos a promessa feita na Sagrada Escritura: «Acima de tudo, mantende entre vós uma intensa caridade, porque o amor cobre a multidão de pecados» (1 Ped 4, 8); «redime o teu pecado pela justiça; e as tuas iniquidades, pela piedade para com os infelizes» (Dn 4, 24); « a água apaga o fogo ardente, e a esmola expia o pecado» (Sir 3, 30). O mesmo ensina também Santo Agostinho: «Tal como, em perigo de incêndio, correríamos a buscar água para o apagar (...), o mesmo deveríamos fazer quando nos turvamos porque, da nossa palha, irrompeu a chama do pecado; assim, quando se nos proporciona a ocasião de uma obra cheia de misericórdia, alegremo-nos por ela como se fosse uma fonte que nos é oferecida e da qual podemos tomar a água para extinguir o incêndio».353 A lógica da misericórdia pastoral

307. Para evitar qualquer interpretação tendenciosa, lembro que, de modo algum, deve a Igreja renunciar a propor o ideal pleno do matrimónio, o projeto de Deus em toda a sua grandeza: «É preciso encorajar os jovens baptizados para não hesitarem perante a riqueza que o sacramento do matrimónio oferece aos seus projetos de amor, com a força do apoio que recebem da graça de Cristo e da possibilidade de participar plenamente na vida da Igreja». A tibieza, qualquer forma de relativismo ou um excessivo respeito na hora de propor o sacramento seriam uma falta de fidelidade ao Evangelho e também uma falta de amor da Igreja pelos próprios jovens. A compreensão pelas situações excepcionais não implica jamais esconder a luz do ideal mais pleno, nem propor menos de quanto Jesus oferece ao ser humano. Hoje, mais importante do que uma pastoral dos falimentos é o esforço pastoral para consolidar os matrimónios e assim evitar as rupturas.

308. Todavia, da nossa consciência do peso das circunstâncias atenuantes – psicológicas, históricas e mesmo biológicas – conclui-se que, «sem diminuir o valor do ideal evangélico, é preciso acompanhar, com misericórdia e paciência, as possíveis etapas de crescimento das pessoas, que se vão construindo dia após dia », dando lugar à «misericórdia do Senhor que nos incentiva a praticar o bem possível». Compreendo aqueles que preferem uma pastoral mais rígida, que não dê lugar a confusão alguma; mas creio sinceramente que Jesus Cristo quer uma Igreja atenta ao bem que o Espírito derrama no meio da fragilidade: uma Mãe que, ao mesmo tempo que expressa claramente a sua doutrina objetiva, «não renuncia ao bem possível, ainda que corra o risco de sujar-se com a lama da estrada ». Os pastores, que propõem aos fiéis o ideal pleno do Evangelho e a doutrina da Igreja, devem ajudá-los também a assumir a lógica da compaixão pelas pessoas frágeis e evitar perseguições ou juízos demasiado duros e impacientes. O próprio Evangelho exige que não julguemos nem condenemos (cf. Mt 7, 1; Lc 6, 37). Jesus « espera que renunciemos a procurar aqueles abrigos pessoais ou comunitários que permitem manter-nos à distância do nó do drama humano, a fim de aceitarmos verdadeiramente entrar em contato com a vida concreta dos outros e conhecermos a força da ternura. Quando o fazemos, a vida complica-se sempre maravilhosamente ».

309. É providencial que estas reflexões sejam desenvolvidas no contexto de um Ano Jubilar dedicado à misericórdia, porque, também perante as mais diversas situações que afetam a família, « a Igreja tem a missão de anunciar a misericórdia de Deus, coração pulsante do Evangelho, que por meio dela deve chegar ao coração e à mente de cada pessoa. A Esposa de Cristo assume o comportamento do Filho de Deus, que vai ao encontro de todos sem excluir ninguém». Ela bem sabe que o próprio Jesus Se apresenta como Pastor de cem ovelhas, não de noventa e nove; e quer tê-las todas. A partir desta consciência, tornar-se-á possível que «a todos, crentes e afastados, possa chegar o bálsamo da misericórdia como sinal do Reino de Deus já presente no meio de nós».

310. Não podemos esquecer que « a misericórdia não é apenas o agir do Pai, mas torna-se o critério para individuar quem são os seus verdadeiros filhos. Em suma, somos chamados a viver de misericórdia, porque, primeiro, foi usada misericórdia para connosco». Não é uma proposta romântica nem uma resposta débil ao amor de Deus, que sempre quer promover as pessoas, porque « a arquitrave que suporta a vida da Igreja é a misericórdia. Toda a sua ação pastoral deveria estar envolvida pela ternura com que se dirige aos crentes; no anúncio e testemunho que oferece ao mundo, nada pode ser desprovido de misericórdia ». É verdade que, às vezes, « agimos como controladores da graça e não como facilitadores. Mas a Igreja não é uma alfândega; é a casa paterna, onde há lugar para todos com a sua vida fadigosa ».

311. O ensino da teologia moral não deveria deixar de assumir estas considerações, porque, embora seja verdade que é preciso ter cuidado com a integralidade da doutrina moral da Igreja, todavia sempre se deve pôr um cuidado especial em evidenciar e encorajar os valores mais altos e centrais do Evangelho, particularmente o primado da caridade como resposta à iniciativa gratuita do amor de Deus. Às vezes custa-nos muito dar lugar, na pastoral, ao amor incondicional de Deus. Pomos tantas condições à misericórdia que a esvaziamos de sentido concreto e real significado, e esta é a pior maneira de aguar o Evangelho. É verdade, por exemplo, que a misericórdia não exclui a justiça e a verdade, mas, antes de tudo, temos de dizer que a misericórdia é a plenitude da justiça e a manifestação mais luminosa da verdade de Deus. Por isso, convém sempre considerar «inadequada qualquer concepção teológica que, em última instância, ponha em dúvida a própria omnipotência de Deus e, especialmente, a sua misericórdia».

312. Isto fornece-nos um quadro e um clima que nos impedem de desenvolver uma moral fria de escritório quando nos ocupamos dos temas mais delicados, situando-nos, antes, no contexto dum discernimento pastoral cheio de amor misericordioso, que sempre se inclina para compreender, perdoar, acompanhar, esperar e sobretudo integrar. Esta é a lógica que deve prevalecer na Igreja, para «fazer a experiência de abrir o coração àqueles que vivem nas mais variadas periferias existenciais».  Convido os fiéis, que vivem situações complexas, a aproximar-se com confiança para falar com os seus pastores ou com leigos que vivem entregues ao Senhor. Nem sempre encontrarão neles uma confirmação das próprias ideias ou desejos, mas seguramente receberão uma luz que lhes permita compreender melhor o que está a acontecer e poderão descobrir um caminho de amadurecimento pessoal. E convido os pastores a escutar, com carinho e serenidade, com o desejo sincero de entrar no coração do drama das pessoas e compreender o seu ponto de vista, para ajudá-las a viver melhor e reconhecer o seu lugar na Igreja.

 


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